Matt Damon e Ben Affleck se reúnem em filme de violência contra a mulher
Os amigos de infância Matt Damon e Ben Affleck eram dois atores praticamente desconhecidos à procura de uma carreira quando escreveram Gênio Indomável (1997). O projeto não só atraiu o diretor Gus Van Sant e o ator Robin Williams (1951-2014), que ganhou seu único Oscar, de ator coadjuvante, pelo filme, como levou a estatueta de roteiro original. De lá para cá, os dois tiveram trajetórias mais do que bem-sucedidas em Hollywood, como atores, roteiristas e produtores e, no caso de Affleck, também como diretor.
Eles nunca mais tinham escrito juntos, apesar de continuarem amigos do peito, até O Último Duelo, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 14. “Acho que tínhamos medo de escrever, porque fomos tão ineficientes da primeira vez”, contou Damon em entrevista à imprensa, por videoconferência. “Levou anos, porque não tínhamos ideia do que estávamos fazendo. Escrevemos milhares de páginas e basicamente apertamos tudo em um roteiro. Mas acho que depois de 25 anos aprendemos um pouco mais sobre estrutura. No fim, acabou sendo bastante eficiente.”
Eles juram que não estavam à procura de um roteiro para escreverem juntos. Matt Damon um dia topou com O Último Duelo, escrito por Eric Jager, que está sendo lançado no Brasil pela Intrínseca. O livro é resultado de uma pesquisa sobre a história do último duelo autorizado pelo Parlamento de Paris. Pouco depois do Natal de 1386, o cavaleiro normando Jean de Carrouges (interpretado por Matt Damon na versão cinematográfica) enfrentou o escudeiro Jacques Le Gris (Adam Driver), acusado pela mulher de Carrouges, Marguerite (Jodie Comer), de estupro. Basicamente, foi um julgamento por combate, como aqueles que ficaram famosos em Game of Thrones: quem vencesse seria considerado inocente, pois poupado por Deus.
Damon achou que era o projeto ideal para voltar a trabalhar com Ridley Scott, com quem tinha feito Perdido em Marte (2015) – afinal, o primeiro longa do diretor tinha sido Os Duelistas, sobre um duelo no início do século 19, e ele é conhecido pelas cenas de ação. Scott topou de cara, adiando alguns dos vários filmes que toca ao mesmo tempo. Em um jantar com Affleck, Damon contou a história e ouviu do amigo uma proposta para escreverem juntos. “Então aconteceu de forma muito orgânica”, afirmou Damon.
No começo, O Último Duelo parece um filme clássico sobre a Idade Média, com caras durões – com cortes de cabelo terríveis, a bem da verdade – defendendo sua honra e suas propriedades, mulheres inclusive, metidos em armaduras, com espadas pesadas, sangue, lama, tripas. “Queríamos que o filme usasse todos os tropos do cinema nos dois primeiros atos”, disse Damon em entrevista ao Estadão. “Queríamos que o filme parecesse esquecer as mulheres, de modo que elas fossem apenas manifestações do que os homens necessitam. E aí no terceiro ato, de repente o espectador é apresentado a esse mundo das mulheres ignoradas, da maneira como sempre aconteceu no cinema.” Como brincou a corroteirista Nicole Holofcener na coletiva de imprensa virtual, “queríamos que o público se perguntasse por que a Jodie Comer, sendo uma atriz tão bem-sucedida, aceitou fazer esse papel tão ruim”.
É na terceira parte que o filme realmente diz a que veio: é, na verdade, a história de uma mulher apagada pela História e violentada de diversas maneiras, começando no casamento como transação econômica. “Foi um campo minado interpretar três perspectivas diferentes, mas apenas uma verdade”, contou Comer na coletiva.
O Último Duelo parece não ter nada a ver com a carreira anterior de Holofcener, conhecida por dramas centrados em figuras femininas, como Amigas com Dinheiro (2006), À Procura do Amor (2013) e Poderia Me Perdoar? (2018). Mas, como Matt Damon e Ben Affleck admitiram, foi a melhor decisão que poderiam ter tomado. Eles precisavam de uma mulher para dar vida interior a Marguerite e entender as nuances de um tema tão delicado como o estupro. Até porque tinham decidido dividir a história em três partes, estilo Rashomon: a primeira tem a versão de Carrouges, a segunda, de Le Gris, e a terceira, de Marguerite. Em teoria, Damon escreveu Carrouges, Affleck fez o pedaço de Le Gris (que ele ia interpretar, mas acabou com o papel do aristocrata Pierre d’Alençon, que dá cobertura para o escudeiro feito por Driver), e Holofcener ficou com Marguerite. Claro que, no fim, todos colaboraram em todos os segmentos. “O trabalho de Nicole foi difícil, porque Matt e eu tínhamos muitos documentos históricos em que nos apoiar, enquanto Nicole teve de escrever ficção, basicamente, porque não se escrevia nada sobre as mulheres daquele tempo”, observou Affleck.
Uma das preocupações era que, mesmo nas versões de Carrouges e Le Gris, não restasse dúvidas de que Marguerite era uma vítima. “Não havia ambivalência. Le Gris queria fazer sexo com ela e escolheu ver as coisas de certa maneira”, disse Holofcener ao Estadão. Enquanto isso, seu marido tomou o estupro não como uma violência contra a sua mulher, mas contra a sua propriedade, já que as mulheres não eram consideradas seres humanos. A produção também teve o cuidado de contratar uma coordenadora de cenas íntimas e de consultar diversas organizações de apoio a sobreviventes de abuso sexual. “Eles nos disseram se a cena estava longa demais, como filmar. Não há nudez, por exemplo. Nós escolhemos escrever e filmar de forma consciente.”
Para Matt Damon e Ben Affleck, era o mínimo que poderiam fazer. Eles sabem que estamos em um momento em que se instalar confortavelmente em seu ponto de vista privilegiado não é mais uma opção. “Temos de continuar aprendendo e ouvindo”, concluiu Affleck ao Estadão. “Estamos nos dando conta de que a nossa perspectiva pode não ser a do outro, que as pessoas são diferentes etnicamente, linguisticamente, em termos de gênero, orientação sexual. Se você aceitar isso e a premissa básica de que os seres humanos têm vidas e experiências diferentes, mas que todos merecem respeito e compreensão, precisa estar aberto à comunicação e ao aprendizado. Essa é a mensagem que eu ouvi e que aprendi.”
Para ele, somos, afinal, produto de uma estrutura patriarcal, corrupta, imoral, que cria pessoas que refletem esses valores. No filme, a Igreja, a ciência, as cortes, o governo apoiam esse sistema. O que acontece em O Último Duelo parece algo bem extremo e distante no passado, mas seus vestígios ainda podem ser observados. Um sorriso que é tomado como convite.
Um não que é ignorado como um protesto que uma dama ou uma “mulher direita” deve fazer antes do sexo. E instituições e uma sociedade que não estão abertas a ouvir as mulheres sem tratá-las como culpadas, quando elas pouco têm a ganhar ao fazer uma denúncia. “Eu espero, sinceramente, que os homens examinem seus comportamentos de maneira mais cuidadosa”, acrescentou Holofcener. “Nosso objetivo com o filme não é mudar ninguém, mas, se isso acontecer, que fantástico.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.