• Macunaíma na terra do nunca

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  • 23/04/2022 09:32
    Por Gastão Reis

    Neste ano de 2022, estamos comemorando o centenário da Semana de Arte Moderna, ocorrida entre 13 e 17 de fevereiro de 1922, em São Paulo. Inevitavelmente, o espaço se abre para “Macunaíma” e seu autor Mário de Andrade. O foco da Semana era nos libertar do modismo europeu, procurar a linguagem nacional e promover a integração entre o homem brasileiro e sua terra. Aparentemente seus promotores parecem ter esquecido que esse processo vinha se consolidando há cerca de 4 séculos, com sucesso, até 1889.

    “Macunaíma – O herói sem nenhum caráter” é considerado a obra máxima de Mário de Andrade por suas ousadias formais, não seguindo uma ordem cronológica nem espacial. Trata-se, nas palavras do autor, de uma rapsódia, música livre e fortemente emocional. Na verdade, “Macunaíma” é o anti-herói nacional, sem etnia definida. Ele é filho de uma índia e se transmuda de negro para branco. O tripé da nacionalidade luso-afro-indígena é definido dessa forma caricatural sem compromisso com os fatos históricos. Diria mesmo, um tanto desinformada por parte de Mario de Andrade, como veremos.

    Com alguma razão, alguns diriam que não é adequado analisar uma obra onírica (de óneiros, sonho em grego), contrapondo-a a fatos. Ou seja, algo que se passa no mundo dos sonhos e que não pertence ao mundo real. No entanto, pretendo ir mais fundo na compreensão de “Macunaíma”, e no que teria motivado Mario de Andrade a escrevê-la. Sua alegoria faz uso de uma narrativa (republicana) distorcida muito distante da vida brasileira ao longo dos séculos.

    Tive a oportunidade de assistir recentemente um programa de televisão em que vários escritores, ensaístas e historiadores se manifestaram sobre o anti-herói em tela, que é definido pelo autor como extremamente preguiçoso, fora da lei, e que se contrapõe a uma sociedade moderna, organizada em um sistema racional e tecnológico. Um deles afirma mesmo que a malandragem é fundamental para entendermos o Brasil. Outro nos informa que vivemos cerca de quatro séculos nas costas de escravos africanos. Fica aquele sabor de um Norman V. Peale às avessas, onde o pensamento negativo assume o comando.

    O livro foi escrito no início da república, fins da década de 1920, em tempos ditos republicanos, que já refletiam a desilusão entre o prometido e a vida real republicana. Presença militar, sempre pronta a participar da política; poder concentrado no triângulo Rio-São Paulo-Minas Gerais, em que esses estados se revezavam no mando sem dar vez ao Sul e ao Nordeste. Reinava a eleição a bico de pena, a mais rápida da história mundial: os vencedores eram conhecidos na véspera, já que as atas eram escritas um dia antes ao da eleição. Qualquer ser vivo, bem como as pedras, sabia do faz-de-conta.

    Uma profunda decepção com a vida nacional já havia se instalado. A despeito de quase três décadas após a publicação de “Os sertões” de Euclides da Cunha, em 1902, as influências do pensamento positivista com seus traços deterministas e preconceituosos continuavam na ordem do dia. As ideias eugenistas camuflavam a vergonha de parte da intelectualidade em relação à composição étnica do povo brasileiro. Silvio Romero, com falas claramente racistas, pregava que o tronco básico da nacionalidade luso-afro-indígena era composto por raças degeneradas, incapazes de nos conferir uma identidade nacional própria. A “solução” seria o embranquecimento progressivo para regenerar a herança europeia lusitana. Claro, esqueceu do sangue mouro.

    Sem dúvida, que “Macunaína” reflete esse clima intelectual de um regime político ilegítimo que se instalou em detrimento da preservação do interesse público. O simples fato de um livro como “Macunaíma” ter sido escrito reflete as dúvidas que povoavam a cabeça de muitos intelectuais pátrios. Eles se questionavam se tínhamos de fato uma identidade nacional como os europeus. Franceses, ingleses ou alemães se diferenciam até mesmo em seus traços fisionômicos. A evidência escancarada de sermos um povo miscigenado era mal digerida. O fundamental é que estamos irmanados pela língua portuguesa.

    O cerne da questão – a educação pública de má qualidade – não entra no roteiro dos capítulos de Macunaíma. Em meados do século XIX, cerca de metade da população de origem africana no Rio de Janeiro já era livre. Isso lhe permitiu ter acesso às muitas escolas públicas de qualidade criadas por D. Pedro II, já que cabia ao governo central do Império cuidar da educação básica. Foi assim que intelectuais negros e mulatos se tornaram figuras de destaque. Nas províncias e municípios, era tarefa atribuída pela constituição de 1824 aos poderes locais. Professores do ensino médio, em 1889, no Rio de Janeiro, ganhavam o triplo, em termos reais, do que ganham hoje seus congêneres.

    Mário de Andrade publicou “Macunaíma” em 1928, ainda desconhecendo pesquisas posteriores que mostravam a pujança da economia colonial, a ponto de no início do século XIX termos renda per capita no mesmo patamar do da americana. E isto exigiu muito trabalho duro.A propaganda republicana de seu tempo obscureceu o legado do século XIX em termos político-institucionais, onde o poder moderador foi um instrumento eficaz para conter os desmandos do andar de cima, coisa que em sua época não tinha limites. País sem rumo.

    Quanto ao trabalho duro dos tempos coloniais e imperiais, tanto de escravos quanto de brancos, os registros históricos não deixam dúvida. A vida rural e urbana começava muito cedo. Existem boas descrições delas. Esse ser macu-naímico de Mário de Andrade é surrealista, onde aspectos ilógicos, fantasiosos e lendas assumem o palco. O escritor, em seu processo criativo, tem o direito de inventar mundos de sonho sem compromisso com o a realidade.

    Mas não tem o direito de sugerir que está retratando o caráter nacional de um povo que, desde sempre, acorda de madrugada para enfrentar jornadas exaustivas de trabalho. O cantor e compositor Lobão, numa entrevista, afirmou que jamais se reconheceu em “Macunaíma”. Nem o povo brasileiro. E nem eu.

    (*) Vídeo do autor, “Inversão de Valores”, gravado no programa DOIS MINUTOS COM GASTÃO REIS. Basta clicar no link abaixo para assistir:

    https://www.youtube.com/watch?v=CSpng1r_oRA

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