• Livro aponta as referências de Machado de Assis ao mundo jurídico

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  • 22/09/2021 15:48
    Por Ubiratan Brasil / Estadão

    Um dos grandes mistérios da literatura brasileira – teria Capitu traído ou não Bentinho, no romance Dom Casmurro? – acaba de receber um veredicto, a partir de uma análise pouco comum, feita pelo advogado e jornalista Miguel Matos. Ele é o autor de Código de Machado de Assis (Editora Migalhas), livro em que disseca a obra do Bruxo do Cosme Velho (1839-1908) sob o olhar jurídico.

    “Na minha opinião, Machado sonhava em fazer Direito. Ele era um admirador dos acadêmicos. E não só pelo curso de Direito, que é a disciplina da convivência humana (objeto central de sua obra), como também pelo ambiente acadêmico”, observa Matos ao Estadão. “Quando ele critica os advogados, e isso acontece várias vezes, me parece que está demonstrando seu inconformismo com o fato de muitos terem tido (ao contrário dele) a oportunidade de estudar e não fazerem bom uso desse que era, na época, um privilégio.”

    Matos é criador do site Migalhas, dedicado a assuntos jurídicos, além de amante da prosa machadiana. O livro, portanto, é a conversão de seus dois interesses. Com um cuidadoso projeto editorial, a obra analisa cronologicamente todos os escritos de Machado, filtrados pelo olhar de um advogado.

    Não se trata do primeiro trabalho de Matos no gênero – publicou outro livro em 2008 -, assim como o assunto já foi esmiuçado por outros autores (como Nilo Batista, em Machado de Assis, Criminalista, de 2018). “O estilo de Machado, sem paralelo na nossa literatura, tem familiaridade com o Direito porque o escritor mergulha na problemática humana, farejando os comportamentos sociais. E o que isso tem a ver com o Direito? É que as normas jurídicas tratam exatamente disso, das relações e comportamentos humanos”, comenta Matos. “Quando uma lei diz que a pena é maior ou menor dependendo de quem é a vítima, de sua idade ou de como o crime foi praticado, o que se está fazendo é moldando as leis diante das condutas. E, para isso, é preciso fazer uma análise comportamental, coisa que Machado fazia com extrema habilidade. É certo que ele não investigava o ser humano para aplicar regras de Direito. Ele o investigava para nos mostrar como, na verdade, somos.”

    Não é de se estranhar, portanto, que os romances machadianos estejam repletos de advogados, além de juízes e outras figuras ligadas à Justiça. E a grande maioria não ganha descrição elogiosa.

    Em Ressurreição (1872), por exemplo, surge o primeiro personagem jurídico, Dr. Meneses, um frustrado no amor, pois não é correspondido no foro da paixão. Já em A Mão e a Luva (1874), os dois protagonistas, Luís Alves e Estevão, transitam no mundo jurídico. Na intrincada história vivida por ambos, Luís tem sucesso porque, segundo Matos, se vale exemplarmente de uma das características necessárias para um bom advogado: a argumentação convincente. Machado, inclusive, chega a utilizar termos jurídicos para nomear capítulos – como “embargos de terceiro”, que será usado novamente em Dom Casmurro, mas de forma mais reveladora, como se verá.

    Já o terceiro romance, Helena (1876), traz, segundo Matos, o grande nascimento do Direito na obra machadiana. “O livro em si é um processo de Direito de Família”, escreve. “Trata-se de um inventário, no qual o Conselheiro Vale reconhece a paternidade de uma filha, Helena.”

    “Creio que Machado se valia dos institutos jurídicos e da terminologia forense como uma alegoria na narrativa”, comenta Matos ao Estadão. “Como exemplo disso, estão as esdrúxulas cláusulas testamentárias. Em vários textos, ele inclui um testamento que possui uma condição curiosa, como em Quincas Borba, em que o personagem Rubião, para abocanhar a herança do filósofo Quincas Borba, precisa cuidar do cachorro como se gente fosse.”

    A famosa ironia machadiana, aliás, pontua a maioria de seus textos, que trazem elegantes observações. Em O Alienista, por exemplo, o vereador Galvão é preso no hospício da Casa Verde pelo médico Simão Bacamarte e, ao receber uma polpuda herança, “corrompeu os juízes e embaçou os outros herdeiros”, o que lhe garantiu a liberdade, em notória ação de corrupção praticada no Judiciário.

    Ao longo das observações apresentadas em Código de Machado de Assis, o leitor percebe a predileção do escritor por maus advogados. “De fato, a grande maioria dos advogados machadianos não é exemplo de bons profissionais”, diz Matos. “Há o que ignorou o Direito até a morte e outros que, embora graduados em ciência jurídica, não usavam o diploma para sobreviver. Bentinho é um dos raros casos de causídicos que escapam da ferina crítica do escritor, sendo que na obra podemos vê-lo até mesmo estudando processos. E, sim, pode ser que Machado de Assis o tenha feito propositadamente advogado, qualificando assim suas opiniões. Mas se ele o presenteou como um bom advogado, é forçoso notar que o construiu cheio de ciúmes e cismas. Ou seja, salvou-o de um lado, mas o condenou de outro, na dualidade que é sua marca registrada.”

    Miguel Matos refere-se a Bentinho, um dos três principais personagens de Dom Casmurro (1899), obra marcada, entre várias qualidades, pela dúvida plantada na mente do leitor: teria Capitu traído seu marido, Bentinho, com o amigo dele, Escobar? E, desde então, leitores de diversas gerações se perguntam: o ciúme de Bentinho era mesmo justificado? Ezequiel era de fato filho de Escobar, fruto de uma aventura extraconjugal de Capitu? A incerteza alimentou debates ao longo de décadas, alguns divertidos – como a variação de julgamentos que marcou o pensamento da escritora Lygia Fagundes Telles.

    Segundo ela, depois de sua primeira leitura da obra, o que fez quando cursava Direito nos anos 1940, acreditava que Capitu era uma santa, enquanto Bentinho, um neurótico, histérico. A segunda leitura foi na maturidade, em 1967, quando Lygia estava casada com o crítico e escritor Paulo Emílio Sales Gomes. Juntos, preparavam Capitu, roteiro filmado por Paulo César Saraceni. Depois de reler o livro, a escritora disse ao marido: “Mudei completamente de ideia: a mulher traiu ele sim, o filho não era dele”.

    Nos últimos anos, porém, Lygia confessou sua indecisão. “Minha última versão é essa: não sei”, disse ao Estadão, em 2008, entre risos. “Acho que enfim suspendi o juízo. No começo, ela era uma santa; depois, um monstro. Agora, na minha velhice, eu não sei.”

    Ao analisar a trama sob o ponto de vista jurídico, Miguel Matos não apenas dissecou o caso como também apresentou um veredicto – assim, atenção: a partir de agora, o texto estará recheado de spoilers. Matos alega que hoje, pela ótica do Direito Penal, o caso inexistiria, pois o adultério deixou de ser considerado crime. E, sob as leis do Direito de Família, bastaria um teste de DNA para saber quem, de fato, é o pai de Ezequiel.

    Mas, por sorte, a trama se passa na virada do século 19 para o 20, quando a tecnologia quase inexistente da época não abrandava o mistério. E Bentinho, que é o narrador da história, é um raro exemplo de bom advogado, dentro da obra machadiana. “É claro que Bentinho toma as decisões, mas Machado de Assis transferiu o caso para o tribunal popular, tanto que, passados mais de cem anos da publicação da obra, ainda estamos aqui a julgá-lo.”

    Matos começa a embasar seu argumento a partir da cena em que Bentinho vai sozinho ao teatro – alegando dor de cabeça, Capitu ficou em casa. Mas, ao retornar antes do final do espetáculo, ele encontra Escobar dentro de sua casa, à porta do corredor. O amigo justificou ter ido até lá para tratar do “negócio dos embargos”.

    “Ao ouvirmos a narrativa de Escobar, sabemos que, juridicamente falando, não valia nada a circunstância nova que ele relatava. O tal incidente era irrelevante”, escreve Matos. “Como filho de advogado, ele deveria ter algum entendimento acerca da questão.”

    Outro detalhe suspeito, ainda segundo Matos, é o fato de Escobar estar na casa do amigo em um horário impróprio e, principalmente, em um momento em que ele não estaria – fato que apenas Capitu saberia. Finalmente, o argumento decisivo está no título dado por Machado ao capítulo: Embargos de Terceiro.

    Segundo Matos, no Direito, embargos de terceiro diz respeito a uma ação processual na qual um terceiro, que não é parte do processo, interfere na relação das partes alegando a legítima posse ou bem jurídico discutido nos autos. “Em A Mão e a Luva, Machado usou a mesma terminologia jurídica, de maneira metafórica, para se referir à entrada de um terceiro num casal”, escreve. “Dito isso, o veredicto sobre Capitu é inevitável: culpada!”

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