Letras do cancionista revelam suas transformações no livro ‘Renato, o russo’
Grandes demais para serem esgotados por biografias, e mesmo por muitas biografias, alguns atores da música brasileira entram na esteira das análises, teses e estudos de traçados sociais, políticos e psicológicos que podem levar a um entendimento ampliado de suas existências. Um meio biográfico mais livre e complementar ao pacto com a narrativa documental.
Renato Manfredini Jr. é inesgotável. Sua transmutação em Renato Russo, e isso já é a tese, é muito mais complexa e estruturada do que podemos supor. Assim que Manfredini, o retraído, enclausurado e reflexivo, percebe que o mundo em que se enfiou com a Legião Urbana é para os corações duros, ele cria o Russo, uma ‘personagente’ que irá mediar e assumir situações que o outro não daria conta. Russo, no palco, será o expurgo de Manfredini.
A autora Julliany Mucury, que hoje vive em Berlim, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB), tem pronta a publicação Renato, O Russo, que será lançada pela editora Garota FM Books, da jornalista e também mestre no gênero, Chris Fuscaldo. O livro, que será lançado com três capas de cores diferentes, está em campanha de financiamento coletivo pela plataforma Catarse e chega às vésperas dos 25 anos sem o compositor, morto em decorrência da Aids, em 11 de outubro de 1996. O link para quem quiser participar da campanha é www.catarse.me/renatoorusso. Entre as recompensas oferecidas aos apoiadores, estão, além do livro, o envio de outros três títulos da editora: Discobiografia Legionária e Discobiografia Mutante, de Chris Fuscaldo, e Jimmy Page no Brasil, de Leandro Souto Maior.
A teorização de Renato Russo e o entendimento de como suas transformações como autor refletem a transformação do artista e do mundo a seu redor, uma investigação mais emocional do que sintática, é um dos focos da obra. Designar Renato como poeta não basta para Julliany. E dissecá-los, Manfredini e Russo, até encontrar os limites onde o homem se torna a persona não parece seu interesse. Assim, ela escreve: “A criação de Russo por Manfredini Jr. constituiu o sentido do que Mikhail Bakhtin define como acabamento, um precisando do outro para ser acabado, vivendo uma existência compartilhada, ainda que notadamente diferente. Não há uma confusão direta quando analisamos a vida e obra de Renato, há um distanciamento desse autor-criador em relação ao autor que vivencia as experiências. Ainda assim, o mistério que ronda esta fronteira, esta distinção entre ambos, é o que gera e alimenta o caráter messiânico, mitológico, que foi sendo erguido pelos fãs em torno da composição de Russo. Para os fãs do cancionista, muitas de suas composições exerciam influência sobre suas vidas, trazendo certa ordem e sentido para o que eles julgam ser o real.”
Um poeta ou um letrista? Há uma notória resistência nos ambientes acadêmicos para o reconhecimento de produtores de música popular como literatos – e o distanciamento higienista que mantêm do rock é ainda maior. Mesmo nomes canonizados em gêneros considerados de alta estirpe na MPB, como Vinicius de Moraes, tem sua obra ainda tomada com desdém pela Academia. Quando Bob Dylan recebeu o Nobel de Literatura, em 2016, houve chiadeira. Outro Nobel, o peruano Mário Vargas Llosa, afirmou que a “cultura não pode se tornar espetáculo” e ironizou, perguntando aos repórteres: “Quem sabe no ano que vem não dão o prêmio a um jogador de futebol?”
Mas o termo poeta também não bastaria para o entendimento de Russo. Mais do que isso, era preciso chegar a algo em que coubesse o pensador também da canção, algo que os poetas não fazem. Assim, os estudos do compositor Luiz Tatit resolveram a questão de Julliany. Russo seria um cancionista: “Ele (o termo cancionista) serve para definir um artista que habita a zona de produção da letra de canção e também do elemento melódico que a acompanha. Para Tatit, o cancionista é um malabarista, equilibrando melodia no texto e texto na melodia com tal habilidade que não parece haver esforço”, escreve a autora, antes de reproduzir o conceito do próprio Tatit: “O cancionista é um gesticulador sinuoso com uma perícia intuitiva muitas vezes metaforizada com a figura do malandro, do apaixonado, do gozador, do oportunista, do lírico, mas sempre um gesticulador que manobra sua oralidade, e cativa, melodicamente, a confiança do ouvinte.”
A leitura crítica de 29 canções assinadas por Renato Russo mostra à autora a evolução e a mudança de eixos de um homem que inicia denunciando atrocidades ao redor em Será, Geração Coca-Cola e Fábrica, segue colocando lentes de roteirista na relação de Eduardo e Mônica e ganha densidade para fazer de Faroeste Caboclo sua própria Hurricane, como ele dizia quando cobiçava algo nos moldes da monumental letra de Dylan. A Aids fará uma ruptura com todos os caminhos anteriores e colocará Russo na trilha da morte, da angústia e da despedida que se ouvem nas letras do álbum A Tempestade ou O Livro dos Dias, lançado um mês antes de sua morte, em 1996.
A intenção de Russo, lembra a autora, ia além da criação de letras para uma banda de rock. Ela retoma um drama de Renato vivido aos 15 anos, quando ele foi diagnosticado com epifisiólise, um desgaste dos ossos e cartilagens que faz a cabeça do fêmur se descolar da bacia. Obrigado a ficar sobre uma cama por dois anos, o garoto criou em seu mundo particular a banda The 42nd Street Band, liderada pelo baixista e vocalista também imaginário Eric Russell, ninguém menos do que ele mesmo. É nos escritos de Renato sobre as características de Russel que percebemos a alma livre do garoto almejando criar obras para o cinema e para o teatro. “Ele tinha uma ambição muito maior do que a de fazer música”, diz Julliany.
Raul Seixas acreditou no personagem que criou para si e morreu sendo ele. Renato Russo cansou. Trancafiado e distante, agonizou em um apartamento sem permitir, como fez Cazuza, que seus ossos fossem fotografados. Julliany pensa no fim com tristeza. “Como Maria Callas, ele se fechou, se entregou e não voltou mais.” Ao final do livro, ela escreve: “Renato Russo, criação de Renato Manfredini Jr., isolou-se do real ao esconder a forma física diante da luta contra o HIV, sendo que um dos poucos relatos deste quadro está presente na biografia de Dado Villa-Lobos, que registra o dia da morte de Manfredini Jr. e a chegada ao apartamento. O corpo não acompanhou a dimensão da poesia e, em 11 de outubro de 1996, despediu-se deste plano para deixar vivo ainda o rastro do cancionista.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.