• Laurentino e Escravidão III: contrapontos

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  • 02/07/2022 08:00
    Por Gastão Reis

    Já está nas livrarias o volume 3 da trilogia “Escravidão”, de Laurentino Gomes, autor da trilogia anterior “1808”, “1822” e “1889”. Sem dúvida, um esforço admirável de levantamento de informações relativas a um longo período de nossa história. Li os dois primeiros volumes a respeito dos quais escrevi artigos ressaltando pontos omissos de ambos. Ainda não li o terceiro livro todo, mas partes dele de meu especial interesse, que me permitem fazer alguns contrapontos relevantes sempre no espírito do debate civilizado. Aquele menos interessado em ganhar a discussão e mais em trazer informações que contribuam para ampliar o conhecimento do tema em tela.

    Em linhas gerais, este terceiro volume, a despeito da riqueza de informações levantadas, sofre também de uma visão muito centrada no caso brasileiro, sem levar na devida conta o panorama mais amplo do que foi a escravidão em outras partes do mundo, no tempo e no espaço. Um exemplo ilustrativo surge no primeiro capítulo, “Folguedos da Libertação”, onde o autor nos informa que “Ser dono de terras e de pessoas escravizadas era o principal indicador de prestígio e riqueza no Brasil”. A frase soa como se fosse algo típico do Brasil quando, de fato, na Antiguidade e na Idade Média, períodos históricos que duraram séculos, também o eram.

    Tomemos o caso da Princesa Isabel, nesse mesmo capítulo, em que Laurentino reproduz a sabedoria convencional, e desinformada, sobre ela. Após ocupar a Regência, por duas vezes, e em plena terceira, em que completaria quase quatro anos como Chefe de Estado, equivalente a um atual mandado presidencial, ele nos (des)informa do seguinte modo: “Era, porém, uma mulher sem carisma e imatura, com enormes dificuldades no diálogo com os partidos e forças políticas, o que lançava sérias dúvidas a respeito da viabilidade de um terceiro reinado”. Não toca no machismo reinante.

    No meu livro recém-lançado, “História da Autoestima Nacional”, no capítulo sobre Isabel, com base em sólida documentação, afirmo o seguinte: “Estudou matemática, física e química, dentre outras matérias, tendo-se tornado nesta última muito aplicada. E ainda latim e grego, além de dominar o francês, o inglês e o alemão. Em filosofia, entrou em contato com os grandes pensadores (…) em que sua visão pessoal sobre temas filosóficos era exigida (…) Economia Política também foi objeto de seu aprendizado, sendo exposta ainda a aulas de Direito Civil, Administrativo e Constitucional”.

    Cabe ainda mencionar a figura da Condessa de Barral como tutora da Princesa Isabel, por oito anos, período equivalente hoje a ter cursado duas faculdades. Não é bem aquela figura de cortesã, versão TV Globo. Se houve algo entre ela e Pedro II, foi após esses oito anos como tutora, segundo pesquisa em andamento. A Barral chegou a Petrópolis num domingo, em 1856, para não perder tempo de aula. Atitude de profissional. O regime de estudos era extremamente rígido, indo das 7 da manhã às 9 da noite. Isabel e sua irmâ Leopoldina estudaram 38 matérias com professores escolhidos a dedo.

    A Barral dominava várias línguas, e se sentia à vontade para discutir temas de história pátria e mundial. Teve um salão em Paris por onde passaram personalidades europeias de peso. Tinha habilidade política, sendo negociadora durona. Foi dona de dois engenhos de açúcar. Era fã do lundu e abolicionista. Libertou os escravos de suas fazendas bem antes do 13 de Maio. Pergunta óbvia: como é que uma tutora com este perfil poderia gerar uma pupila beata, ingênua e submissa ao marido. Uma católica praticante não precisa ser beata; a vacina Barral a imunizou contra a ingenuidade; e por fim, nas reuniões do Conselho de Estado, ela chegava mesmo a discordar do marido, o conde D’Eu. Estranha submissão. Não toca nos efeitos danosos do positivismo nos quartéis.

    Existem algumas contradições entre partes do relato que Laurentino Gomes nos fornece neste volume três. A mais interessante delas é sobre uma fala do trono de Isabel e mais um fato que lhe escapou sobre a composição do senado.

    Numa Fala do Trono de Isabel, em sua terceira regência, Laurentino critica uma passagem em que a Princesa assumia que a abolição era uma aspiração nacional. Segundo ele, não era. A resistência viria dos senhores de escravos até onde foi possível. Ele já havia dito antes que o senado do Império era dominado pela elite escravocrata. E nos fornece números sobre a votação na câmara e no senado na aprovação da Lei Áurea. Um simples cálculo evidencia que, na Câmara, a lei foi aprovada por 2/3 e no senado por mais de ¾! Na verdade, os números falam a favor da Princesa. Os ditos escravocratas votaram a favor!

    Na página 56 do volume III, ele embarca na canoa furada da Mary Del Piore (não escrevi Priore), em entrevista deplorável ao Globo: Isabel só teria assumido a Causa publicamente 6 meses antes de assinar a Lei Áurea. Poucas injustiças são tão graves quanto esta. Era pública e notória a posição de Isabel a favor da abolição a ponto de ter dado guarida a negros fugidos no porão do palácio. (A famosa rádio-peão já funcionava naquela época). Seu pai, Pedro II, libertou todos os escravos que serviam no palácio em 1838.

    Não é só isso. O autor repete a lenga-lenga de que o Brasil foi o último país a libertar os escravos em 1889. Deveria ressaltar, o que ele mesmo escreveu no volume I, que o Brasil foi um caso praticamente único de alforrias em grande número no mundo, a ponto de 80% das pessoas de origem africana já serem livres quando a Lei Áurea foi assinada. Infelizmente, ele não faz a distinção crucial entre a monarquia e a república no tratamento da questão servil.

    Por fim, Laurentino cita a “indignação” de diplomatas ingleses com a demora em pôr fím ao tráfico negreiro pelo governo brasileiro sem mencionar o fato de que, na mesma época, 1/6 dos recursos do tesouro inglês eram oriundos de impostos sobre o comércio do ópio. Ou sobre o vergonhoso imposto sobre o sal na Índia. Dois pesos e duas medidas.

    Por vezes, comete o equívoco fatal em olhar o passado com olhos do presente. Mas trata-se de livro a ser lido.

    Nota (*): Vídeo meu, “Reação do Brasil Profundo”, sobre os desmandos da república no uso do dinheiro publico. Continua atual. Clique no link abaixo:

    https://www.youtube.com/watch?v=Bytk5mwEm90&t=5s

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