Juristas evangélicos pediram liberação só de práticas religiosas sem aglomeração
A ação na qual o ministro Kassio Nunes Marques liberou a realização de cultos e missas em meio ao pior momento da pandemia no País chegou ao Supremo Tribunal Federal em junho de 2020 – momento em que a covid-19 havia matado 40 mil brasileiros e o antecessor de Kassio, o ministro aposentado Celso de Mello, ainda integrava o STF. Na ocasião, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos pediu ao então decano que derrubasse decretos municipais e estaduais que haviam vedado atividades religiosas e o funcionamento dos templos sem ressalvar práticas religiosas que não gerassem aglomeração – o que não incluía cultos e missas.
“Frise-se que, para os religiosos, os cultos públicos são atividades fundamentais e irrenunciáveis. Abdicar do ajuntamento presencial tem sido um sacrifício para religiosos de todo o mundo. Ainda assim, por amor à comunidade e em nome da prudência e do bom senso, é o que se tem feito na maior parte das organizações religiosas do Brasil”, registrou a Anajure na ocasião.
A entidade listou atividades que teriam sido impactadas pelos decretos questionados: serviços de capelania, ações de cunho social e filantrópico, atividades eclesiásticas administrativas e até transmissões de cerimônias religiosas por meios virtuais, quando não há público presente.
O argumento da entidade era o de que tais atividades seriam ‘inerentemente conectadas ao exercício da liberdade religiosa’ e estariam unidas por ‘terem sido indevidamente restringidas durante a pandemia’. “Com exceção dos cultos presenciais públicos, nenhuma gera aglomeração”, frisou a Anajure na petição inicial.
O documento de 32 páginas reconhece que uma das medidas adotadas para conter o avanço da covid-19 foi a suspensão dos cultos públicos presenciais, ‘vez que a aglomeração de pessoas nesses locais poderia impulsionar a proliferação do vírus’. A entidade ainda destacou que muitas igrejas, antes mesmo de qualquer determinação, transferiram suas cerimônias religiosas para o ambiente virtual.
Oito meses depois, Kassio viu semelhança entre o pedido da Anajure e duas ações contra o decreto do governador João Doria (PSDB) que proibiu os templos de abrirem as portas para atividades coletivas. Na véspera do domingo de Páscoa, o ministro do STF autorizou as celebrações religiosas em todo o País, com adoção de protocolos e limitando a presença em cultos e missas a 25% da capacidade do público.
“Reconheço que o momento é de cautela, ante o contexto pandêmico que vivenciamos. Ainda assim, e justamente por vivermos em momentos tão difíceis, mais se faz necessário reconhecer a essencialidade da atividade religiosa, responsável, entre outras funções, por conferir acolhimento e conforto espiritual”, escreveu o ministro, que lembrou a importância das celebrações da Páscoa para os cristãos.
Recursos e críticas
O entendimento de Kassio provocou desconforto no tribunal e foi duramente criticado pelo decano do STF, Marco Aurélio Mello. Na avaliação de magistrados, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) não possui legitimidade para entrar com uma ação no Supremo contra decretos estaduais e municipais. A expectativa de integrantes da Corte é a de que a medida seja revista.
“O novato (Nunes Marques assumiu uma cadeira na Corte em novembro do ano passado), pelo visto, tem expertise no tema. Pobre Supremo, pobre Judiciário. E atendeu a Associação de juristas evangélicos. Parte legítima para a ADPF (tipo de processo que discute cumprimento à Constituição)? Aonde vamos parar? Tempos estranhos!”, disse Marco Aurélio ao Estadão. O decano tem aposentadoria marcada para julho, abrindo uma segunda vaga para indicação de Bolsonaro.
A Advocacia Geral da União (AGU) também havia questionado a legitimidade da Anajure para para ingressar com a ação. Depois da publicação de reportagem do Estadão sobre o posicionamento da pasta, o advogado-geral da União, André Mendonça, enviou uma nova manifestação, revendo o entendimento, e se posicionando, a favor da legitimidade da entidade.
O próprio ministro Kassio Nunes Marques também trocou de lado. Em fevereiro, ele concordou com os colegas e votou pelo arquivamento de um pedido da entidade para derrubar decretos municipais que impuseram toque de recolher, interrompendo atividades religiosas.