Joyce retoma, em novo álbum, percepções vividas há 4 décadas
Na canção Tema para Jobim, de 1985, Joyce Moreno, que assina a letra para a melodia feita pelo saxofonista americano Gerry Mulligan, fala sobre o sabiá que já não canta mais e a flor que já não dá mais.
Naquele ano, a compositora, cantora e violonista carioca fazia uma alusão à bossa nova e, de certa forma, à poesia das canções da turma daquele movimento e da geração imediatamente seguinte, da qual ela faz parte, que havia perdido espaço no meio musical brasileiro.
Passados quase 40 anos, Joyce, na canção que dá nome ao seu recém-lançado álbum, Brasileiras Canções (Biscoito Fino), dá continuidade a esse pensamento. Como “uma jura de amor, um feitiço, ou um encanto”, como diz a letra, ela diz que como um “passarinho no céu de urubu” o que ela representa segue firme, mesmo em céu sombrio que insiste em querer firmar-se no Brasil.
“É a arte brasileira sobrevoando esse momento que a gente vive. A metáfora é clara. Todos nós da arte vivemos o que escreveu o (Mário) Quintana. ‘Eles passarão, eu passarinho.’ Você pode até matar o artista, mas a arte sobrevive”, afirma. Na bossa Todo Mundo, que abre o disco, Joyce fala do mal disfarçado de virtude. “São aqueles cidadãos de bem. Um conto do vigário, como se dizia antigamente”, conta.
A parceria que ela inaugura com Moacyr Luz também leva a marca desses tempos. O samba que fizeram e cantam juntos filosofa sobre a morte, tema presente neste período de mais de dois anos de pandemia em que Joyce compôs cerca de 40 canções – algumas gravadas por outros intérpretes, como Aurorear, criação dela com Emicida, gravada pela cantora Alaíde Costa.
SILÊNCIO INTERNO
Todas essas questões, lembra Joyce, passaram pela sua antena de compositora que precisa de silêncio interno para se conectar, sobretudo em um disco em que ela assina 11 das 12 canções. Compor passou a ser uma válvula de escape.
Quem entrou meio de penetra nessa profícua fase de letrista de Joyce foi o compositor e poeta português Tiago Torres da Silva, responsável pela letra de Tantas Vidas, a única do disco com o eu lírico feminino, algo que Joyce pode chamar de seu. Joyce observa que Tiago é uma espécie de Hermínio Bello de Carvalho mais jovem. Um agitador cultural lá em Portugal.
A faixa foi gravada com a participação da cantora Mônica Salmaso. Outras presenças no disco são o cantor e instrumentista Alfredo Del-Penho, no choro Quem Nunca, e do violonista Chico Pinheiro na instrumental Não Deu Certo (mas Foi Divertido).
A banda base que acompanha Joyce é formada por Hélio Alves (piano), Jorge Helder (baixo) e Tutty Moreno (bateria), além de seu violão e de eventuais participações de outros músicos entre as faixas.
O show de lançamento de Brasileiras Canções, o 42º disco de sua carreira, está marcado para 25 de setembro, no Sesc Pinheiros, em São Paulo.
Essa persistência de Joyce também se dá por meio de uma música, mais precisamente da bossa suingada e do samba, que não foge à influência do jazz, que é muito particular dela e que a levou pelo mundo afora – embora seu trabalho, como ela ressalta à reportagem do Estadão, tenha percorrido o Nordeste e Minas Gerais. “Minha música é muito conversadeira”, resume.
Recém-chegada de excursão por países da Europa, além de uma passagem pela primeira vez por Cingapura, Joyce afirma ter encontrado plateias ávidas – e lotadas – por ouvir seu som. Uma sede pela vida, com a música como ponte.
Em tempos de “briga” de artistas brasileiros pelo topo das paradas mundiais, Joyce disse que, pela Europa, os shows de abertura de suas apresentações traziam o repertório de nomes como Guinga, Moacir Santos e Tom Zé, entre outros.
WORKSHOP
“Em Cingapura, fizemos um workshop. Eles estão muito interessados na música brasileira. Uma moça estava tocando Manhã de Carnaval. Outra, tinha a partitura de uma música minha, Tardes Cariocas, que a professora dela lhe mostrou. O Brasil joga fora esse tesouro que temos. Se as pessoas soubessem da potência da música brasileira, não precisaríamos nem do agronegócio”, brinca. Ainda sobre as incursões de Joyce pelo exterior, o disco Natureza, gravado por ela em parceria com Maurício Maestro em 1977, em Nova York, e nunca lançado, ganhará edição em vinil agora em setembro.
Com produção musical e arranjos do maestro alemão Claus Ogerman (1930-2016) – o preferido de Tom Jobim -, o álbum foi remasterizado a partir de uma fita cassete guardada por Joyce. Com participação de músicos brasileiros como Naná Vasconcelos, João Palma e Tutty Moreno, ele traz faixas como Feminina, gravada com mais de 11 minutos de duração. Puro jazz.
As versões para o fato de Natureza, que Joyce chama de “lenda urbana”, ter ficado guardado por 45 anos são muitas. Ele não teria sido lançado porque à época Joyce se recusou a regravar o disco com as letras em inglês. Questões de contrato da orquestra também pesaram. Depois disso, Ogerman, segundo Joyce, passou a querer uma fortuna para colocá-lo no mercado. Ele também teria exigido que o álbum fosse mixado em determinado estúdio, igualmente dispendioso.
“Esse disco é importante, pois é um documento de um momento muito importante de nossas carreiras”, admite Joyce, sobre o que seria sua primeira tentativa de trilhar uma carreira no exterior, algo que aconteceria nos anos 1990.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.