• Inteligência artificial, sempre artificial

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  • 17/ago 08:00
    Por Gastão Reis

    É sempre reconfortante saber que no Vale do Silício existem dois grupos com visões distintas sobre a inteligência artificial (IA). Tem a turma dos entusiastas que veem a IA como algo equivalente ou até superior à inteligência humana (IH). E a outra, mais cautelosa, que vê na IA um instrumento longe do  que a IH é capaz de realizar. Vão além, a IA encontrará seu limite em algum momento. A boa notícia é que não existe a burra unanimidade de que nos falava Nelson Rodrigues. Ele sabia que a unanimidade como regra de vida apontava para uma sociedade de robôs, aquela queridinha do Stálin.

    Há também divergências sobre os bilhões de dólares investidos em IA. Uns pensam que é demais e que o retorno não será tão fantástico como alegam os entusiastas, que estão no polo oposto do grupo dos cautelosos. Outras áreas merecem receber parte dos recursos com a vantagem de poder ter retorno maior. Sundar Pichai, indiano formado pelo Indian Institute of Technology Kharagpur e CEO do Google desde 2019, respondeu afirmando que “o risco de não investir é maior que o de investir”. Mas não se manifestou quanto ao volume a ser investido, que deverá ser de US$ 100 bilhões neste ano.

    Gary Marcus é um cientista e empresário, que costuma usar o X (antigo Tweeter) para tecer duras críticas às estruturas de poder do Vale do Silício. Em suas próprias palavras, ele alerta: “As pessoas que estão administrando a IA não se importam muito com o que se pode chamar de IA responsável, e que as consequências para a sociedade podem ser graves”. É um crítico peso pesado. Acabou de escrever um livro intitulado “Taming Silicon Valley” (Domando o Vale do Silício) a ser lançado agora no segundo semestre deste ano.

    É o que ele chamou de seu manifesto sobre como a IA deve ser regulamentada. E é também um chamado à ação. Diz mais: “Precisamos envolver o público na luta para tentar fazer com que as empresas de IA se comportem de forma responsável”. Ele está no mesmo barco da imprensa europeia quando ela se levantou contra a apropriação indébita de suas matérias para alimentar as plataformas na internet. Exigiu ser paga e vem sendo bem-sucedida. É um Robin Hood às avessas: roubam conteúdos dos (pobres) jornais para ganhar bilhões em suas plataformas na internet.

    É surpreendente a sem-cerimônia com que essas grandes empresas (plataformas) foram se eximindo de pagar direitos autorais garantidos por lei em todos os países do mundo. A única explicação é a sensação de seu poder sem limites para infringir a lei, conhecida por qualquer mortal. A gravidade de tal iniciativa evidencia uma postura autoritária, ou até totalitária, nada condizente com a sólida tradição democrática do Ocidente.

    Gary Marcus vai além. E nos fala do vídeo generativo (um sistema de inteligência artificial que transforma textos em filmes realistas) nos informando ser mais um modelo de negócios explorador oriundo das empresas de tecnologia. Artistas e escritores, inclusive o “New York Times”, processaram empresas de IA alegando que garimpavam a internet em busca de dados e textos para treinar seus modelos, o que viola a propriedade intelectual deles.

    Passemos agora a um teste da IA para verificar quão boa ela, de fato, é. Uma das mais conhecidas é o ChatGPT. Diante de comentários de amigos e conhecidos sobre as proezas do ChatGPT, resolvi fazer um teste quanto à criatividade deste dispositivo. Simplesmente, peguei um artigo meu a ser publicado.  Digitei o título e algumas poucas informações adicionais. E pedi ao referido dispositivo que elaborasse um texto de duas laudas (cerca de 5800 cce – caracteres com espaços).                              

    E qual foi o resultado? Confesso que não me surpreendi. Esperava que estivesse longe do meu texto, em que sempre coloco minha criatividade para dar algo diferente e interessante ao leitor. E a razão é simples. O ChatGPT é, na verdade, um grande copiador. Se o meu artigo já tivesse sido publicado, é bem provável que ele gerasse algo de melhor qualidade, apropriando-se do que havia de melhor no meu texto.  Reflete bem a dificuldade do dispositivo de ser realmente criativo.

    Seria, então, inútil? Não mesmo. Basta fazer um teste, por exemplo, de um profissional, digamos, de administração que resolva solicitar ao ChatGPT uma carta de apresentação para uma empresa em que ele pretende trabalhar.  Aqui sim, surpreende a qualidade do texto que ele é capaz de produzir. Como existem milhares de cartas desse tipo na internet, ele consegue aparentemente ser “criativo” na medida em que é capaz de combinar o melhor que encontrou entre as diversas cartas disponíveis. E acaba gerando, na média, algo melhor do que o profissional mencionado conseguiria produzir.

    Mas as vantagens do dispositivo vão além. No dia a dia, a correspondência rotineira não muda muito de empresa para empresa. Um executivo pode economizar tempo precioso usando o ChatGPT ou equivalente. Os vídeos generativos também podem ser muito úteis às empresas no sentido de economizar horas e mais horas de trabalho caso o executivo, ou colaborador, tivesse que partir do zero.

    Quais os riscos a que estaríamos expostos na medida em que abusássemos do uso de tais dispositivos? Qual seria o efeito sobre a criatividade natural da IH? Talvez ela se atrofiasse, como tudo que deixa de ser posto em movimento. Claro que textos rotineiros na mecânica diária de certa atividade profissional, onde é escasso o uso da criatividade, não haveria maiores perdas. Mas, no mundo em que vivemos, a busca pela inovação é permanente em qualquer atividade. O chavão do Chacrinha, “Quem não se comunica se trumbica”, pode ser adaptado para “Quem não inova também se trumbica”.

    Em suma, corremos sempre o risco de nos acomodarmos. Por outro lado, quando certas soluções se cristalizam e resistem ao tempo, podemos liberar tempo para a criatividade se manifestar em outras áreas em que precisamos utilizá-la ao máximo, como no caso da preservação do meio ambiente.

    Use a IA, que é artificial, sem abusar para preservar sua criatividade.     

    **Sobre o autor: Gastão Reis é Economista, palestrante e escritor

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