Império dos fãs cria mecanismo de sucesso na geração Digital
O reino dos fãs não é mais uma expressão poética. Ele classifica uma mais ativa e intensa relação de jovens com seus ídolos no tempo em que se vive o acirramento de relações digitais capazes de transformar pessoas com habilidades em exposição de rede e algum talento artístico em imortais de alcance planetário. Fãs quase sempre existiram – e há quem diga que os primeiros da civilização cristã ocidental, antes de Elvis começar a mobilizar as primeiras hordas de um artista pop, tenham sido os próprios apóstolos de Cristo. Mas talvez nada, nem mesmo a Beatlemania, tenha agido de modo tão determinante quanto os fãs da geração streaming.
Os fandom, corruptela de fã e kingdom (reino, em inglês), não têm mais nada dos fãs-clubes subservientes que estiveram em cena dos anos 1950 aos 1990. O fã que um dia aguardou pelo próximo álbum colando fotos na porta do armário vive com seu ídolo, entra em sua casa, sabe de seu café da manhã e decide o repertório do próximo show. E em troca do quê? Aí está a nova cláusula do contrato. Ao ter acesso a uma vida inteiramente compartilhada por seu ídolo, ou seja, à sua alma, o fã oferece algo que já esteve em outras mãos: o sucesso. E hoje é só o fã, esse novo deus, o filtro capaz de colocar artistas no topo do mundo por meio de ações coordenadas e avassaladoras.
Os reflexos dessa relação já são objeto de estudo das plataformas. A maior delas, o Spotify, com 422 milhões de usuários, acaba de fazer um levantamento global com números que mostram como essas relações se dão por conexões cada vez mais expandidas: 1. “Os fãs reconhecem que boa música pode vir de qualquer lugar. Em média, ouvintes globais escutam artistas de 14 países diferentes todos os meses”. 2. “Em média, 66% das descobertas de artistas acontecem fora do país de origem do artista.” 3. “Artistas começam com bases de fãs nacionais, depois expandem para outras partes do mundo.” 4. “Músicas salvas são ouvidas três vezes mais.” 5. “Os maiores fãs podem gerar muitos streamings: em média, os top 5% de fãs escutam seis vezes mais que todo o restante da audiência.”
ENGRENAGEM. Carolina Alzuguir, líder da divisão de artistas e gravadoras no Spotify Brasil, fala sobre suas percepções: “São os fãs que fazem a máquina girar para que o artista atinja cada vez mais ouvintes. É por isso que é tão importante que os artistas se conectem cada vez melhor com seus fãs e se dediquem à construção de sua audiência”. Sobre o impacto na relação comercial, ela aponta: “Muitos artistas decidem os países e cidades pelos quais a turnê vai passar com base nos dados de audiência por cidade que nós oferecemos… Passamos de uma experiência baseada em transações de compra e propriedade de conteúdo de áudio para um modelo baseado em acesso”.
Mas essa já não é mais uma discussão só de mercado, e talvez seja a hora de fazer levantamentos também junto a quem chamamos genericamente de fã. O que dizem alguns dos jovens contatados pelo Estadão demole parte de preconceitos como, por exemplo, o de que o fã espera ouvir sempre a mesma música de seus artistas. “Não acho que (o artista) precise atender totalmente às expectativas”, diz Lucas Nery Santos, de 19 anos, fã de Anitta há nove e administrador de um dos maiores fãs-clubes da capital, o heyy_anitta. “Acho que ser artista é passar por vários estilos musicais.” Larissa Patire, de 24 anos, também fã e seguidora de Anitta, pega a mesma direção: “Confesso que coloco expectativas nas músicas sim, mas também acho incrível quando ela surpreende com algo totalmente diferente. Isso acaba muitas vezes atendendo a expectativas independentemente de ser da forma como imaginávamos”.
E os artistas do pós-pop que estão na outra ponta do processo? O que pensam? Com a pausa do grupo sul-coreano BTS, anunciada na última semana, o conterrâneo DKZ pode ver suas fileiras aumentarem significativamente. Eles ainda estão longe dos mais de 37 milhões de ouvintes mensais que os concorrentes têm no Spotify, mas se movimentam rapidamente, com shows marcados para 9 e 10 de julho no Brasil durante a K-Expo, no Centro Cultural Coreano no Brasil.
O líder do grupo, Jonghyeong, diz ao jornal: “As grandes expectativas dos nossos fãs não chegam a ser algo que pesa. Elas me fazem sentir mais ambicioso e impaciente com relação a mim mesmo. Os fãs são como se fossem integrantes do nosso grupo, estamos criando boas lembranças com eles”.
Se toda moeda tem dois lados, esta pode esconder algo perigoso a fãs e artistas. Ao anunciar a pausa do BTS, o integrante Kim Nam-joon, conhecido por RM, desabafou: “O problema com o K-pop e todo o sistema de ídolos é que não te dão tempo para amadurecer. Você tem de continuar produzindo e fazendo alguma coisa”.
Este é o ponto, produzir e aparecer sem parar. A professora Simone Pereira de Sá, autora do livro Música Pop Periférica Brasileira: Videoclipes, Performances e Tretas na Cultura Digital, diz que a condição de “permanente visibilidade” do artista é, mais do que exaustivo, inviável. “O artista precisa entregar sempre o que chamo de ‘coerência expressiva’, mas, em algum momento, sua superexposição vai levá-lo a um escorregão. Ele vai criar um ruído. É quando surge o cancelamento.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.