• Impasse migratório na UE deixa refugiados expostos ao frio

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  • 21/02/2023 14:35
    Por AP / Estadão

    Alguns refugiados e requerentes de asilo em Bruxelas estão há meses entre a Rua dos Palácios e o Pequeno Castelo – literalmente. Infelizmente, não se trata de um sonho realizado ao final de sua fuga assustadora até o outro lado do mundo. É um pesadelo sem fim.

    Petit Chateau, que significa pequeno castelo, é um centro de recepção do governo que muitas vezes faz de tudo, menos acolher os recém-chegados. Na Rue des Palais – rua dos palácios – está a ocupação mais precária da cidade, onde o cheiro de urina e a incidência de escorbuto simbolizam o fracasso da política migratória da União Europeia.

    Eles estão apenas a quatro quilômetros do elegante Edifício Europa, onde os líderes da União Europeia realizaram na semana passada uma reunião de cúpula de dois dias para lidar com as questões migratórias que incomodam os 27 Estados-membros há mais de uma década.

    Shinwari, um capitão do exército afegão que por muito tempo ajudou as potências ocidentais a tentarem conter o Taleban, agora vive em um acampamento improvisado no canal diante do Petit Chateau.

    É um lugar desolado e sem esperança.

    “Está muito frio. Alguns têm doenças de todo tipo e muitos estão com depressão, porque não sabemos o que vai acontecer amanhã”, disse o homem de 31 anos, que deixou para trás mulher e filhos, certo de que as forças do Taleban que tomaram o poder em agosto de 2021 matariam soldados como ele, que colaboraram com países da OTAN.

    “Eles vasculham casas. A vida de ninguém estava a salvo”, contou Shinwari. “Eles já disseram uma vez à minha família, ‘seu filho se refugiou em um país infiel’.”

    Mesmo atualmente, longe de casa, ele tem medo e não quer ser identificado por nada além do sobrenome e vagas informações militares. Ele não quer mostrar o rosto em fotos ou vídeos, por medo de que o Taleban possa atacar sua família.

    O que agrava sua situação é a recepção que recebeu na próspera UE, marcada principalmente por indiferença, e às vezes até por hostilidade.

    “Infelizmente, ninguém consegue ouvir nossas vozes”, disse ele em sua barraca, cercado de meia dúzia de ex-militares afegãos.

    O vocabulário dos líderes europeus antes da reunião de cúpula, porém, inclui muito mais “reforço das fronteiras externas”, “cercas de fronteira” e “procedimentos de devolução” do que uma discussão sobre como melhorar imediatamente a vida de pessoas como Shinwari.

    E diante de 330.000 tentativas não autorizadas de entrada na UE no ano passado, um recorde em seis anos, propor um abraço caloroso aos refugiados não ganha muitas eleições no continente no momento atual.

    Muitos afegãos também olham com inveja para as medidas rápidas que a UE tomou depois da invasão russa na Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2021, para conceder aos ucranianos medidas temporárias de proteção, como direito de residência, acesso ao mercado de trabalho, cuidados médicos e assistência social – coisas que praticamente não chegam até eles.

    “A questão dos afegãos e a dos ucranianos é a mesma, mas eles não são tratados da mesma forma”, disse Shinwari. “Quando os ucranianos chegam aqui, eles recebem todas as comodidades (…) logo no primeiro dia, mas nós, afegãos, que deixamos o país por ameaças de segurança, não recebemos nada.”

    “É surpreendente porque os direitos humanos não são os mesmos para todos, e isso nos irrita e nos faz sentir decepcionados e negligenciados.”

    As lideranças europeias já disseram que um avanço completo em suas políticas migratórias só ocorrerá depois das eleições do bloco em junho de 2024.

    Shinwari contou que teve sorte de conseguir atravessar as fronteiras reforçadas da UE para usar seu direito de asilo depois de uma jornada de oito meses passando pelo Paquistão, Irã, Turquia, Bulgária, Sérvia, e terminando na Bélgica. Ele passou por espancamentos, prisão e fuga no Irã, e fome e medo ao longo de boa parte do percurso.

    Shinwari chegou vivo à Europa, “mas agora que estou aqui, fiquei sem-teto como um nômade”, com uma frágil barraca azul para se proteger das muitas chuvas da Bélgica, disse.

    Outros ex-soldados afegãos se estabeleceram na Rue des Palais, onde as histórias de trauma, depressão, drogas e violência são igualmente sombrias.

    “A situação aqui não é boa. Se a Cruz Vermelha trouxer comida, teremos algo para comer, mas se não, muitos não têm nada”, explicou Roz Amin Khan, que fugiu da província de Laghman e chegou à Bélgica dois meses atrás.

    Desde sua chegada, quatro meses atrás, Shinwari diz ter feito uma entrevista com as autoridades de análise de asilo, e está esperando desde então.

    A falta de auxílio para a maioria dos refugiados tem levado ONGs e voluntários ao desespero.

    “Entre o arcabouço legal e a situação na prática há um mundo de diferença”, disse Clement Valentin, agente de apoio jurídico na fundação de refugiados CIRE. “Há uma lacuna e é difícil entender – para mim e para as ONGs.”

    “Mas não consigo nem chegar perto de imaginar como deve ser difícil para os afegãos aqui na Bélgica, ou em outros países europeus, entender isso.”

    A lentidão jurídica não se limita à Bélgica. A Agência da União Europeia para o Asilo informou em seu último relatório de tendências, em novembro de 2022, que “a lacuna entre os pedidos e as decisões atingiu sua maior extensão desde 2015?, e ainda estaria aumentando. No geral, segundo o relatório, mais de 920.000 casos ainda estavam em aberto, um aumento anual de 14%.

    O acúmulo de pendências burocráticas no Petit Chateau quando Shinwari chegou era tanto, que os possíveis requerentes de asilo precisavam esperar na chuva e no frio, às vezes por dias, apenas para passar pela porta da frente. Cidadãos que moravam nas proximidades levaram comida e fizeram fogueiras, porque o governo não tomou providências.

    Mesmo que a situação tenha melhorado, as cicatrizes físicas e mentais são fáceis de ver, disse Michel Genet, diretor na Bélgica da organização Médicos do Mundo.

    “As pessoas passaram por grandes traumas e uma situação muito difícil, e esperam chegar aqui e serem atendidas”, mas não são, disse Genet.

    Durante muitas noites sem dormir no frio congelante, ouvindo o zumbido monótono dos carros passando ao fundo, os pensamentos de Shinwari se voltam para casa.

    “Às vezes penso no futuro, e quanto tempo ainda terei que viver nas ruas”, disse. “Minha cabeça está cheia de problemas. Eu penso na segurança da minha família e no meu futuro.”

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