• Humor: do politicamente correto ao racismo, embate vai longe

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  • 13/02/2022 08:00
    Por Matheus Lopes Quirino / Estadão

    É notável observar a história do humor no Brasil, tanto pela qualidade dos humoristas que aqui aclimataram sua graça quanto pela quantidade de expressões populares encampadas em nome do cômico, produzindo um leque de tons variados sobre piadas que, muitas vezes, versam sobre um mesmo assunto. Existem temas recorrentes no humor brasileiro, como piadas de português, papagaios, caipiras e grande elenco. Nesse debate caloroso sobre os limites e excessos do humor, bem como seus alvos preferenciais, poucas vezes prevalece o bom senso.

    Com o passar das décadas, a evolução do humor acompanhou a cultura pop e as modas populares, recorrendo a músicas (chanchadas, marchinhas) e ao conteúdo televisivo (as musas de novela parodiadas em humorísticos, releituras de clássicos com viés cômico). No início dessa história, há mais de cem anos, o humor gráfico servia como um alento para os pesados jornais diários e suas tipografias em preto e branco. Levando em conta essa trajetória, três pesquisadores lançam agora o livro Além do Riso: Reflexões Sobre o Humor em Toda Parte (LiberArs).

    “O humor é importante na cultura de um país justamente porque ele é associado à simples diversão. Esta trivialidade do humor constitui a porta de entrada do intérprete na cultura”, explica o professor Elias Thomé Saliba, coordenador do grupo de pesquisa História e Humor, da Universidade de São Paulo (USP). Saliba, um apreciador do humor gráfico brasileiro, dedica-se a analisar a atemporalidade dessas narrativas, ainda hoje fonte de inspiração para cartunistas e chargistas. “Apesar da ascensão das telas digitais, o humor gráfico continuou a ser uma receita privilegiada para a comunicação instantânea”, reflete. “A charge é mais fácil de compreender, pois o artista já realiza a singularização, parte do nosso processo mental de ver as imagens. Através do exagero do traço – e da abstração – o desenho cômico exerce a função de contrariar nossas imagens canônicas.”

    ORIGENS. Ícone do humor gráfico de meados do século 20, J. Carlos foi um artista polivalente, autor de sambas e um chargista que tinha como escritório os bondes e ruas do Rio de Janeiro. Na então Capital Federal, J. Carlos inaugurou uma crônica visual singular, influenciado pelo art déco e alinhado às tendências populares. Também observava a movimentação da classe trabalhadora e foi um crítico do fascismo. Suas cores vibrantes e traço refinado podiam ser vistos em revistas alternativas, como Para Todos (foto nesta página) e pasquins satíricos. Saliba explica como o humor visual praticado pelo chargista carioca era recebido: “Várias pesquisas sobre a recepção ao humor gráfico mostram o quanto o público tende a se identificar com o elemento vulnerável de uma história. Podemos até rir da vítima em uma piada, pegadinha ou anedota – desde que estas narrativas sejam construídas com certa distância, como se apenas observássemos o desenrolar dos fatos. Porém, no instante em que o narrador se posiciona como parte da história e se coloca em posição de dominância, assumindo de vez a sua superioridade, o espectador/ouvinte tende a simpatizar com a vítima”.

    Uma das críticas que recai sobre o desenhista carioca é o cunho racista de muitos de seus trabalhos. Não era raro ver negros em situações desvantajosas e com fenótipos exagerados, traços depreciativos, olhos esbugalhados, poucos detalhes no rosto (como na foto maior desta página). Algo que se reproduziu por décadas, mesmo em outras mídias, como a televisão, que suscitou, só recentemente, um debate sobre o envelhecimento do humor. Segundo Leandro Antônio de Almeida, o humor envelhece e acompanha a consciência da sociedade sobre o que é, de fato, engraçado. “Envelhece também quando os valores se transformam, gerando presença incômoda de conteúdos outrora veiculados no cotidiano, nas mídias de massa e na internet. Piadas degradantes contra grupos subalternizados, comuns em décadas anteriores, têm gerado debates e críticas à sua difusão. A consciência sobre os efeitos sociais de estereótipos negativos de classe, gênero, raça e orientação sexual têm levado tal humor a ser percebido cada vez menos como engraçado na esfera pública”, pontua Almeida.

    TELINHA. “Quando a televisão procura uma linguagem própria, ela vai encontrar humoristas do rádio com aquela habilidade de exercitar a verve cômica nesse novo veículo”, conta a coorganizadora do livro, Thaís Leão Vieira. Ao colocar em discussão as origens do humor audiovisual, Vieira faz referência ao áureo período das difusoras e seus programas humorísticos, com figuras que se consagraram no imaginário popular, como Haroldo Barbosa e Abelardo Barbosa, o Chacrinha. Faróis do humor, eles se tornaram precursores no humor televisivo.

    Em 1952, Haroldo Barbosa estava prestes a criar uma fórmula de sucesso nunca antes vista na história do humor. Contratado da Rádio Mayrink Veiga, uma das mais populares do Rio de Janeiro, Barbosa roteirizou a Escolinha, um humorístico que brincava com os estereótipos das salas de aula, com alunos figurões, excêntricos convidados e humor cáustico. Cinco anos depois, o sucesso do rádio foi adaptado para a televisão, à época TV Rio, que durante 38 anos teve como “professor” o humorista Chico Anysio, papel que marcaria sua carreira para sempre. “No caso de Chico Anysio, a comicidade não estava apoiada apenas na gestualidade do ator e na palavra, mas também na voz”, observa Thaís Leão Vieira.

    “O repertório do humorista dialoga tanto com o humor radiofônico como com a própria tradição do teatro musical no Brasil herdada por Chico Anysio, pois seu trabalho resulta numa brincadeira verbal cuja dimensão cômica está na maneira de falar: na articulação vocal, na exploração da tipologia das piadas e em procedimentos humorísticos que fizeram parte da verve cômica de humoristas do começo do século 20 no Brasil”, completa a pesquisadora. Para ela, a eficácia da piada, sua pertinência, é resultado da habilidade do humorista em trabalhar com o tema, abstrair ideologias e atuar.

    Se existe uma cobrança legítima sobre o que perde ou não contexto (e graça) a pesquisadora, refletindo sobre as críticas que alguns movimentos identitários fazem à obra do autor, diz: “Pelos que censuram um tipo de humor porque o veem como impróprio, é preciso observar que Chico Anysio dizia que o humor é tudo, até engraçado”. Essa visão, conclui a pesquisadora, “é importante e necessária para a compreensão do humor, porque, ao fazer uma piada sobre o homossexual, o negro, ou sobre a mulher, o humorista exagera ou usa de ironia, ou seja, muitas vezes é a imitação de um discurso.”

    Segundo ela, o humorista é um retrato escrachado de comportamentos em voga, como explica: “Em outros termos, não tendo ele o discurso de um boçal, está imitando e satirizando o discurso de um boçal. É preciso que o intérprete compreenda para além da literalidade do discurso e não ignore o contexto no qual uma coisa é dita para não cair no anacronismo.”

    MEME. Na era do meme, as figurinhas que representam de maneira rápida e prática pensamentos e sacadas acerca de qualquer coisa, se reproduzem na quase na velocidade da luz. Reciclando elementos da cultura pop para atingir cada vez mais público, os memes ganham um capítulo separado em Além do Riso. É quando os autores tentam explicar o cenário contemporâneo de humor na internet. De vilãs de novela que representam o estado de espírito do pessoal de trabalho na sexta-feira, como no clássico vídeo pinçado da novela Avenida Brasil, de João Emanuel Carneiro, Carminha (Adriana Esteves) é um exemplo que se conecta a diferentes faixas etárias devido ao sucesso da trama original. O desafio dos memes, em geral, é transcender a efemeridade da própria internet. Tal mérito é para poucos – e Carminha está entre eles. “Hoje todo mundo pode ser humorista e produzir comédia. O que faz lembrar épocas mais antigas quando todo mundo participava das festas romanas”, avalia o professor Saliba. “Mas será mesmo? O meme é uma manifestação humorística que se utiliza da colagem de linguagens mais variadas. Como tudo no mundo digital, a cultura do meme é segmentada, viraliza em comunidades que possuem uma linguagem comum; mas é uma cultura extremamente efêmera, apesar de iniciativas incríveis como um Museu do Meme”, conclui o historiador. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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