• ‘Hoje’, o novo álbum de Delia Fischer, tem a voz de Ney Matogrosso

  • 22/04/2021 07:46
    Por Estadão Conteúdo

    No ano de 2020, como grande parte dos músicos e cantores, a carioca Delia Fischer, que tem seu nome conhecido como diretora musical de produções premiadas como Elis – A Musical e Chacrinha – O Musical, recorreu às lives para dar continuidade ao seu trabalho.

    De sólida formação na música erudita, com os pés fincados no jazz, e um início de carreira no Duo Fênix, ao lado de Claudio Dauelsberg, essencialmente instrumental, Delia, além de extravasar seu lado artístico, queria reforçar o movimento que começou há mais de uma década, quando lançou o álbum Presente. Mostrar-se como cantora.

    No caso de Hoje, disco com nove canções que chega às plataformas digitais nesta sexta-feira, 23, deixa sua voz fluir como intérprete. O repertório, que tem músicas de Ivan Lins, Taiguara, Guilherme Arantes, Beto Guedes, Björk e dos Beatles Lennon e McCartney – além de uma participação do cantor Ney Matogrosso -, foi tirado justamente das apresentações online que fez.

    O álbum é quase integralmente de voz e piano, com exceção da participação de Matias Correa, companheiro de Delia, nas faixas Nascente (Flávio Venturini/Murilo Antunes) e Meu Mundo e Nada Mais (Guilherme Arantes).

    “Nós artistas ficamos muito à flor da pele com a situação gerada pela pandemia. Em mim, o sentimento foi de não querer parar, de não me calar. Fui fazer as lives, que são muito interessantes, mas não deixam frutos (artísticos). Por isso, senti a necessidade de gravar, de deixar tudo registrado com boa qualidade”, diz.

    Duas das músicas que estão no repertório dialogam de forma direta com a necessidade de Delia em não calar a voz neste momento. De 1969, Hoje, de Taiguara, com versos que explicitam as ausências e traumas causados pela ditadura militar brasileira. Neles, também estão a fossa, a fome e a solidão do presente. A outra, O Amor É Meu País, de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza, há tempos absolvida da nódoa ufanista, tem ares de esperança e final feliz.

    “Essas músicas, que parecem ter sido feitas agora, criavam uma conexão imediata com quem estava assistindo. Ao mesmo tempo, causam indignação. Precisamos repetir todas essas mensagens novamente? Hoje eu não conseguia cantar. É um tapa na cara. Foi difícil gravá-la”, conta Delia.

    De Lennon e McCartney, ela pescou In My Life, do álbum Rubber Soul, de 1965, quando os Beatles, segundo os críticos, começaram a se sofisticar. Da cantora e compositora islandesa Björk, Delia canta Jóga, com vocais que evocam a gravação original, lançada em 1997.

    Inédita

    A única inédita do disco é a balada Blues de Acabar, composta por Delia em parceria com Márcio Moreira, que encerra o álbum. A letra fala da dificuldade dos relacionamentos nesses tempos de pandemia. “Então tá combinado/ Não sou mais teu namorado/ Tava mesmo tudo errado como um filme programado para durar só uma estação”, diz um dos trechos.

    Os compositores achavam que a canção tinha o jeito de Ney Matogrosso. Sem ser próxima do cantor, Delia resolveu enviar a música para ele ouvir. Ney respondeu com um “gostei”. Foi o sinal para a compositora chamá-lo para o estúdio – com todos os cuidados que os tempos exigem – para colocar a voz.

    Composta em lá menor, Ney, que em agosto completará 80 anos, pediu para baixar meio tom da canção. “É um nada, mas ele se sentiu mais confortável, até por uma sugestão minha. Ney não perdeu os agudos dele. A voz está maravilhosa. É impressionante como ele coloca uma marca em tudo que faz”, diz Delia.

    Civis

    Delia começou tocando violão e cantando em coral de igreja. Quando se ligou ao piano, ainda na adolescência, a aspiração era ser respeitada tocando o instrumento. Conseguiu. Fez orquestração, arranjo, produção e direção musical.

    Desde que voltou à canção, o desejo, segundo ela, foi cantar para os “civis”, como ela define o público que não seja o de colegas músicos. “Fazer música para a classe é outra coisa. Você faz algo arrojado, complexo. Eles acham incrível. Porém, muitas vezes, o público em geral não é tocado por aquilo. Quando eu canto, me conecto muito mais à canção popular. Quando faço uma live, quero mais é que venha gente me ouvir do que um corpo docente me admirar. Ao mesmo tempo, como me acompanho, não me desconecto do piano. Apenas busco esse equilíbrio”, explica.

    Essa lição, Delia também aprendeu com as aulas de música que fez com o pianista Luiz Eça (1936-1992), quando tinha 18 anos. Ele, um dos nomes essenciais na primeira fase da bossa nova, integrante do Tamba Trio, atuou ao lado de nomes como João Donato, Claudette Soares, Elis Regina e Roberto Carlos. Cansada da rigidez da faculdade de composição, largou – por influência de Eça – a academia.

    “O professor de orquestração descrevia o timbre do oboé. Não fazia sentido para mim. Com o Eça, era uma aula informal, mas muito rica. Trabalhava composições com ele, dividíamos ideias. Ele me orientava e dizia ‘vai embora, vai tocar por aí’. E, de fato, foi o que aconteceu”, conta.

    No palco teatral, Delia estreou fazendo orquestração em 7 – O Musical, de 2007, com canções compostas por Ed Motta. Antes da pandemia, havia começado os trabalhos no musical que contaria a história do Clube da Esquina, projeto que ainda não tem data para estrear.

    “No teatro, em equipe, o trabalho precisa ser árduo. Ensaio e mais ensaio. Muita repetição. Mesmo que seja uma equipe de gênio. Muitos músicos de formação acham que o musical é uma coisa menor. Não é. A atriz que chegou desafinando em três semanas está arrasando. O Egberto (Gismonti), com quem eu trabalhei, sempre disse que ‘não existe música difícil para tocar. Existe estudo malfeito’.”

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