• Historiografia brasileira capenga

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  • 10/fev 08:00
    Por Gastão Reis

    A historiografia brasileira tradicional, por vezes, deixa em zona oculta fatos relevantes de nossa história para infelicidade geral da Nação. Dois requisitos essenciais devem ser atendidos, como nos relembra o Prof. Raphael Tonon. O primeiro é não examinar os diversos períodos da História usando os valores que, hoje, nos são caros. Para entendê-los, é preciso ter em conta aqueles prevalescentes nas diferentes épocas. O segundo é pôr em prática a história comparativa. Por exemplo, como um país se situa, ou se situava, em relação aos demais, levando em conta os diversos indicadores sob análise.

    Mais de meio século atrás tivemos eleições diretas para presidente. Uma das chapas era composta por Jânio Quadros e Milton Campos, um intelectual e político mineiro de perfil conservador. Mas a esquizofrenia da legislação eleitoral da época permitia que o eleitor votasse em Jânio para presidente e no vice de outro partido, no caso, Jango Goulart. Era a chapa JJ – Jânio-Jango, que acabou vencedora.

    O absurdo que não foi levado em conta era que Jânio, a despeito de suas excentricidades, era um candidato de perfil conservador, o que batia de frente  com a visão política de Jango, de esquerda dita progressista. Por uma questão de lógica, se o eleitor votou em Jânio, em sua ausência, o vice deveria abraçar os mesmos valores conservadores, ou seja, Milton Campos. Mas a legislação permitiu tal incoerência, que acabou levando ao golpe de Estado de 1964. Algo impensável se Milton Campos tivesse assumido.      

    A figura de D. Pedro I, com frequência, é vista como um destemperado e um fauno insaciável, omitindo o fato de ter o hábito de ler duas horas por dia e ter sido alfabetizado em latim e português ao mesmo tempo. Foi isto que lhe permitiu, aos nove anos de idade, de se amarrar no mastro do navio que trazia a família real portuguesa para o Brasil, em dia de mar revolto, e ler a Eneida de Virgílio em latim. A prática da leitura diária lhe permitiu criar o hábito da reflexão pausada durante duas horas por dia. E lhe abriu horizontes de conhecimento sobre o que ia pelo mundo em matéria de política e de limitação do poder real, que resultou em duas cartas constitucionais, a nossa (1824) e a portuguesa (1826), as que, até hoje, foram as mais duradouras, lá e cá.

    Ainda sobre D. Pedro I, cabe registrar a pisada em falso de Paulo Francis. Não só dele, mas de muita gente que respeito, inclusive eu, até os 40 anos. No livro dele, “Trinta Anos esta Noite: 1964, o que eu vi e vivi”, ele denota falta de conhecimento sobre figuras nossa História do século XIX. Na página 161, Francis parece cometer um duplo engano. Elogia uma profissão de fé sensata de D. Pedro I, que é, ao que tudo indica, de D. Pedro II.

    E, pior, coloca na boca de D. Pedro I uma fala invertida: faria tudo pelo povo e nada para o povo. De fato, ele disse o oposto: “Tudo para o povo, nada pelo povo”. Esta correta declaração de D. Pedro I foi interpretada de modo tosco. Seria o retrato de seu lado autoritário, quando, na verdade, era sua preocupação com o populismo, que enfrentou através da concepção do Poder Moderador, jamais usado contra o povo. Cuidou para que o País pudesse controlar o andar de cima e ter estabilidade, perdida com a república.

    D. Pedro II escapou em parte da maledicência, embora a Lilia Schwarcz não perca oportunidade de depreciá-lo. Mas, no caso da Guerra do Paraguai, houve até um “historiador” asseverando que estávamos a serviço da Inglaterra para esmagar a industrialização paraguaia incentivada por Solano López. Na verdade, o Brasil, na época, estava de relações diplomáticas rompidas com a Inglaterra em função da questão Christie. O pai de López, em seu leito de morte, advertiu o filho para que jamais entrasse em guerra com o Brasil. Certamente por perceber as intenções bélicas estapafúrdias do filhote. Por fim, merece registro a frase memorável de D. Pedro II, que a república desrespeitou repetidas vezes: “Imprensa se combate com própria imprensa”. E sem censura.    

    Em relação à Princesa Isabel, a imagem corriqueira é que não estaria preparada para assumir o trono. Nada mais injusto. Teve uma educação primorosa durante oito anos sob a competente batuta da Condessa de Barral, que nunca foi amante de D. Pedro II, como é dito. Basta examinar a quantidade de matérias a que foi submetida com os melhores professores nas diversas áreas. Além disso, discordava por vezes do marido, o Conde D´Eu, nas reuniões do Conselho de Estado, o que denotava seu espírito independente. Foi ainda injustiçada pela Mary del Piore (não escrevi Priore), numa entrevista, num domingo, ao jornal O Globo, onde afirmou que a Princesa só se interessou pela abolição seis meses antes de assinar a Lei Áurea. Calúnia inaceitável!

    Os exemplos dados nessa breve resenha são preocupantes, pois combinam desinformação, incompetência e má-fé. O caso de Jânio Quadros em termos da legislação da época é patético, quando se pensa no preço pago pelo País com 21 anos de ditadura militar. Quanto às figuras do Império, o objetivo maléfico foi o de apagar nossa memória da monarquia. Nossa autoestima foi beijar a lona. E virou piada de português, que seria um povo obtuso. A pobreza institucional brasileira, sem instrumentos de defesa do interesse público, continua a fazer estragos. É camuflada por uma democracia em que o povo só se manifesta a cada dois anos nas eleições, mas sem direito de punir e substituir seus representantes entre as eleições, como ocorre nas democracias que funcionam.

    A riqueza institucional que nos foi legada pelas instituições vigentes sob o Império foi apagada da mente das pessoas em geral.  Inclusive das que tiveram acesso ao ensino médio e à educação superior, na medida em foram doutrinadas por uma História mal contada com base na luta de classes. Não houve na nossa História período em que o combate à desigualdade foi levado tão a sério, em especial no século XIX, no que tange às pessoas de origem africana. Sair da condição de escravo para a de homem livre foi um salto e tanto. Mas a república nasceu com a proposta de embranquecer a população. Ou seja, com vergonha de seu próprio povo.

    Digite no Google minha entrevista “Quando o Brasil perdeu o rumo da História”. Ou pelo link:

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