• Hambloc e as mazelas (ampliadas) da República

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  • 27/02/2021 08:00
    Por Gastão Reis

    Pena que Ernest Hambloch não seja mais conhecido e debatido na Terra Brasilis. Ele foi um diplomata inglês que viveu no Brasil por 25 anos, autor de “Sua Majestade o Presidente do Brasil – Um estudo do Brasil Constitucional (1889-1934)”. Logo após a publicação de seu livro em 1934, ele acabou sendo expulso do País como persona non grata. Sua frase, verdadeira e dolorosa, sobre nossos primeiros governantes republicanos explica: “Somente em raras ocasiões, um Governo brasileiro ou a Oposição visa defender um princípio, um programa, uma ideia”. Não foi propriamente original. Antes dele, Humberto de Campos, jornalista e escritor, membro ilustre da ABL – Academia Brasileira de Letras, se queixava do deserto de homens e ideias dos tempos republicanos.

             Estávamos, então, em pleno ensaio ditatorial que nos levou ao Estado Novo em 1937, e entronizou Getúlio Vargas como ditador. Aquele triste período de nossa história que o Barão de Itararé, quando lhe perguntaram “O que é o Estado Novo?”, definiu assim: “É o Estado a que chegamos!”. Como não podiam expulsá-lo do Brasil, a represália foi recolhê-lo à prisão pela ousadia. Ambos, ele e Hambloch, estavam apenas constatando fatos. Mas as razões de um ditador são sempre de ordem superior. E indiscutíveis.

           Na época, houve uma reação instantânea intitulada “Esmagando a Víbora – Crítica do volume His Majesty the President. Sua Majestade o Presidente. Afronta ao Brasil”. A explicação do autor, escondido sob pseudônimo de Brasil Libero, acusava o livro de querer “transformar a Pátria brasileira num Protetorado da agiotagem internacional, e para isso tentam, por meio de seus exércitos de especuladores de câmbio e exploradores das riquezas e economias nacionais, aniquilar o patrimônio e a liberdade dos brasileiros”. Cretinice patrioteira, pois Hamloch, de modo muito bem fundamentado, demonstrava que a obra de derrocada nacional partiu da própria república desde 1889.

             A crítica institucional de Ernest Hambloch era contra os malefícios do presidencialismo do qual o Brasil escapara no regime parlamentar do Império. Quando Dom Pedro I rejeitou o título de Protetor do Brasil, que queriam lhe dar, aceitando apenas o de Defensor Perpétuo, ele deixa muito claro seu repúdio aos caudilhos, já comuns na América Hispânica. Para Hambloch, o Brasil ao adotar o regime presidencialista, com a brutal concentração de poderes num único homem, o presidente, tornou-se herdeiro colateral da tradição caudilhesca vigente no resto da América Latina.

             A convicção democrática de Hambloch fica cristalina quando ele discorda  da afirmação de que o povo latino-americano “não estava preparado para a democracia”. Opõe-se aos defensores de regimes fortes como Oliveira Viana e Francisco Campos, este autor da infeliz “des-constituição” de 1937, apelidada de Polaca. Ambos defendiam o que chamavam de “governo prático”, aquele que não ia além da manutenção da ordem a qualquer custo, pois entendiam como desordem qualquer manifestação de opinião contra o governo. Longe dos tempos em que Dom Pedro II passeava pela Rua do Ouvidor, ouvindo o vendedor de jornal gritar “A República!” sem ser incomodado pela polícia.         

             Já no início da década de 1930, a concentração de poder no Governo Federal era de tal monta que ele abocanhava 63% dos tributos cobrados, indo para os Estados 28% e aos municípios eram reservadas as migalhas de 9%. Conseguiram a proeza de reverter a distribuição da época colonial em que os municípios retinham 70 de cada 100 cruzados arrecadados com apenas 30 deles indo para a Coroa Portuguesa. Também não seguiram o Império. Nos EUA, comparativamente, as proporções eram respectivamente de 31,5%, 14,5% e 54%. Estes percentuais refletem como os governos locais tinham poder efetivo (recursos) nos EUA e a anemia a que foram reduzidos os municípios brasileiros na república forçados a falar fino com o governo federal ainda hoje.

    George Washington, em 1871, diante de uma “revolta de sargentos”, enviou para reprimi-los o gal. Howe. E alertava de “quão perigoso é para a liberdade civil o precedente de soldados armados ditarem as leis para o país”. No Brasil, ainda em 1889, um decreto deu extensos direitos políticos(!) aos oficiais do Exército, que os transformava em diretores dos elementos civis da comunidade. A primazia do poder civil sobre os miliares, vigente no Império, caiu por terra.

    Essa presença militar na política gerou situações em que os tiros saíram pela culatra. A monarquia parlamentar era o aliado natural dos militares contra as oligarquias. O historiador Sergio Buarque de Hollanda afirmava que o Brasil dos fazendeiros todo-poderosos nasceu com a República. E não no Império. O tenentismo, por exemplo, surgiu lutando contra as oligarquias, cujo caminho para o poder foi aberto pelos próprios militares em 1889. As revoluções, golpes e deposições com participação dos militares não resolveram os problemas que denunciavam. No período 1964-1985, não foi diferente, e custou aos militares sua própria desmoralização após 21 anos de ditadura.

          O que Hambloch não poderia imaginar é que essa concentração de poderes em um só homem pudesse caminhar em outra direção, a do Judiciário. Mais especificamente, para o STF. Juristas de renome têm denunciado o alcance das asas do STF ao ampliar suas funções investigando, julgando e até se antecipando em decretar prisões que invadem áreas de outros poderes. Tal situação só ocorre quando um poder se descobre invulnerável, sem um contrapeso que possa podar-lhe os excessos. Teoricamente, os ministros do STF poderiam ser investigados e até cassados por iniciativa do Senado Federal. Entretanto, o número considerável de senadores com processos pendentes no STF impede que eles exerçam o papel que lhes caberia. Círculo vicioso.

             O livro de Ernest Hamloch nos alerta para a armadilha institucional em que caímos. Hoje, as mazelas se ampliaram.  Grudaram nas instituições. Ruy Barbosa nos alertava contra a ditadura do Judiciário contra a qual não haveria a quem reclamar. Só se esqueceu do poder da vontade popular. Mãos à obra.

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