• Gustavo Franco: República versus Império

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  • 13/11/2021 08:00
    Por Gastão Reis

    Novamente, no espírito do debate civilizado, volto ao tema do meu artigo-réplica, “O Precipício da Visão”, ao do economista Gustavo Franco, “A Visão do Precipício”, publicado por ele no Globo e no Estadão, em 27/01/2019, e o meu na Tribuna de Petrópolis (05.02.2019) bem como no Globo On-line (11.02.2019), com outro título, sem minha autorização. Desta vez, lanço mão do excelente livro do Prof. Gustavo Franco, “A Moeda e a Lei – Uma história monetária brasileira (1933-2013)”, em função do fato constatado e denominado por ele de os três demônios: inflacionismo, isolacionismo e seletivismo oriundos da “criatividade” da nova ordem monetária fiduciária implantada no país em 1933. E por uma conclusão que aparentemente lhe escapou quando comparamos o Império com a república nessas questões.

    Em suas próprias palavras, ele estabelece um duro veredito sobre os três demônios que “foram progressivamente libertados e isentos de quaisquer limitações. A tragédia foi se estabelecendo aos poucos, de forma exasperadamente refletida, quase como se fosse premeditada”. A tragédia (múltipla) a que ele se refere foi, respectivamente, a tolerância excessiva com a inflação, que afeta severamente os mais os mais pobres; a busca do crescimento numa moldura de isolamento em relação ao resto do mundo, fugindo da competição internacional; e o seletivismo, que moldou uma espécie de ação entre amigos daqueles que conheciam o caminho das pedras das benesses governamentais

    E aqui eu me permito contar uma historieta sobre os filósofos alemães, sempre muito herméticos em seus textos, que criam imensas dificuldades para os leitores. Os intelectuais franceses, nos bons tempos, eram conhecidos por sua cristalina clareza, bem como por sua capacidade didática de abordar temas complexos, traduzindo-os numa linguagem de fácil compreensão.  Tais habilidades explanatórias encantaram certo filósofo alemão que lhes reconhecia o mérito de desvendá-lo a si mesmo: “Agora sim, eu entendo o que eu estava querendo dizer…”      

    Não é este, sem dúvida, o caso do Prof. Gustavo Franco, cujo livro não lança mão do economês pesado. Mas abre as portas, pelas conclusões a que chega, para um cotejo com o que ocorreu ao longo do Império em referência aos três demônios. No meu artigo-réplica anterior, o foco era mostrar o equívoco que ele cometera ao mencionar um crescimento da renda real per capita, de 1820 a 1990, de apenas 5%. Era como se o Império tivesse parado no tempo.

    Como fundamento de minha réplica, citei a pesquisa recente, de 2013, de Tombolo, A. G & Sampaio, A. V., “O PIB brasileiro nos séculos XIX e XX”, que nos informa que de 1820 a 1875, o PIB per capita cresceu 1,21% a.a., ou seja, praticamente dobrou no período. Causa estranheza tamanha discrepância em relação ao que diz o articulista, levando em conta ainda que, no acumulado da última década do Império, houve um aumento do PIB real per capita de 17% e do PIB global em 42%, segundo a referida (e sólida) pesquisa.

    Naquele artigo, eu havia deixado de mencionar que o orçamento do Império, no (quase) meio século do Segundo Reinado, cresceu dez vezes em termos nominais. Numa inflação média muito baixa, de cerca de 1 a 1,5% ao ano, e dada a relação positiva e estreita entre o PIB e a arrecadação tributária que permitiu multiplicar por dez o orçamento no período, também seria outro argumento de peso para desmontar o crescimento de apenas 5% da renda real per capita mencionada pelo autor.

    Comparemos, agora, o que ocorreu, ao longo do Império, com estes três demônios da nova “ordem” getulista com perniciosos impactos de longo prazo.

    O inflacionismo foi uma sina republicana das mais longas observadas no planeta terra. Numa comparação internacional com 24 países que conviveram com experiências de hiperinflação, o Brasil conseguiu a proeza de registrar uma inflação acumulada de 20.759.903.275.651%, de maio de 1980 a maio de 1995! Comparemos este percentual com a inflação de 50 anos no Império contra 15 na república: se aceitarmos a média anual de 1%, resulta em apenas 64,5% em meio século; ou, se usarmos o 1,5%, vai bater em 105,2%.                             

    Não é preciso muita imaginação para constatar o efeito brutal que essa virulência inflacionária, no período pré-Plano Real, causou em termos de concentração de renda e de aumento da desigualdade. É trágico o impacto do chamado “imposto” inflacionário sobre os mais pobres. No período imperial, a inflação baixíssima permitiu que escravos abrissem conta de poupança na Caixa Econômica e comprassem suas alforrias. Foi também um instrumento poderoso no combate à desigualdade econômica e na esfera civil, esta com a luta de décadas pela abolição de D. Pedro II e a Princesa Isabel.

    O viés isolacionista colocou o país em desvantagem em relação aos demais ao tentar se proteger contra a concorrência internacional. Diferentemente, por exemplo, do Japão que também adotou política de substituição de importações, mas atenta à redução de custos para ser capaz de competir nos mercados externos, nós nos acomodamos em ficar na zona de conforto da proteção aduaneira, dentre outras. O Império agiu de outro modo quanto à nossa com-petitividade externa, com iniciativas corretas, em especial na década de 1880.

    Quanto ao expediente do seletivismo, ele abriu espaço para maquinações de toda espécie.  No acesso, ou não, à moeda estável (correção monetária); no crédito, graça concedida a poucos; e ainda na compra de moeda estrangeira. Em suma, declaração de guerra às boas práticas de gestão e às leis de mercado com graves distorções de longo prazo. No Império, houve também alguns problemas, mas não de tamanha gravidade. Na década de 1880, por exemplo, a importação de máquinas e equipamentos triplicou em termos reais em função de agilização na criação de sociedades anônimas e de acesso ao crédito.

    Os três demônios foram, em boa medida, exorcizados pelo Império, passando ao largo da tragédia premeditada (republicana) de que nos fala Gustavo Franco.     

    (*) Autor de “Armadilhas Institucionais Imobilizantes”, em O Estado de SP, de 30/06/2015. Basta digitar este título no Google. Complementa o artigo acima.

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