• Graphic novel mostra o efeito do bullying na obra de George Orwell

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  • 03/12/2022 08:20
    Por Ubiratan Brasil / Estadão

    Escritor brilhante e crítico cultural do mesmo naipe, o inglês George Orwell (1903-1950) sempre deixou vestígios da influência de sua vida pessoal na carreira em diversos artigos. Em um deles, Tantas, Tantas Eram as Alegrias, ele relata a penosa rotina na escola preparatória St Cyprian’s, onde estudou quando jovem e da qual guardou terríveis recordações, especialmente por conta dos maus-tratos que recebeu de colegas e professores, principalmente por ser bolsista. Foi justamente esse ensaio autobiográfico que inspirou uma graphic novel adaptada pelo premiado escritor de quadrinhos Sean Michael Wilson, lançado agora pela editora Almedina.

    Orwell (que era o pseudônimo literário de Eric Arthur Blair) provavelmente escreveu o artigo entre 1939 e 1948, mas o texto só foi publicado dois anos após sua morte, na Partisan Review, por receio de que as pessoas mencionadas tomassem medidas legais, ainda que o autor tenha trocado os nomes. O texto figura no livro Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios (Companhia das Letras) com o título Tamanhas Eram as Alegrias.

    No artigo, o escritor descreve o tormento absoluto do menino pobre em uma escola esnobe, que o fez alimentar seu desprezo pela autoridade e a forma como era usada. Surras com chibatadas como punição por ter feito xixi na cama e o lembrete constante dos colegas de que ele era o garoto “pobre e bolsista” da turma são alguns dos episódios ilustrados.

    BLAKE

    O título irônico, Tantas, Tantas Eram as Alegrias, foi retirado do poema The Echoing Green (O Verde Ecoante), que faz parte da coleção de 1789 de William Blake, Songs of Inocence (Canções da Inocência). Tal aprendizado sobre o uso da força deixou marcas profundas no pensamento de Orwell a ponto de, segundo especialistas, ter influenciado de algum modo a construção de suas obras-primas A Revolução dos Bichos (1945) e 1984 (1949), livros cujo alvo era direcionado contra o totalitarismo.

    “Adaptar um romance existente ou uma história real em um formato de história em quadrinhos é principalmente selecionar, resumir e recombinar”, conta Sean Michael Wilson ao Estadão, por e-mail. “Às vezes, você precisa inventar novas cenas e novos diálogos para ajudar a história a fluir bem. Por exemplo, em Tantas, Tantas Eram as Alegrias, Orwell menciona seu aborrecimento com o ‘culto da Escócia’ que era comum na Inglaterra da época. Tive de inventar algum diálogo para isso, que Orwell não menciona especificamente. Mas isso foi fácil para mim, já que também sou escocês! Nesse caso, o processo de adaptação não foi tão difícil porque nosso livro é realmente mais longo que o ensaio original. Então, tivemos espaço para expandir as coisas, adicionar novas cenas, mostrar alguns aspectos apenas no visual.”

    Wilson elaborou um tratamento gráfico, ao lado do ilustrador Jaime Huxtable, que revela um mundo cruel por meio dos olhos atentos de uma criança, enquanto justapõe as ruminações do Orwell maduro a respeito do que essa educação diz sobre a sociedade. “Certamente suas experiências escolares tiveram um grande impacto na vida adulta. Em termos de sua profunda aversão ao sistema de classes e de preconceitos baseados em riqueza e poder. Mas não tenho certeza se destacaria este ponto: ‘mais simpatia pela humanidade do que pelo ser humano individual’. Afinal, seu livro 1984 é muito focado nos dois personagens principais, Winston e Julia. Vemos todos os aspectos horríveis através de suas experiências.”

    Para o artista, Orwell afirmava ser um socialista democrático. “Assim, os livros podem ser vistos dentro da ampla consideração de ‘como podemos fazer um sistema melhor que não dê errado?'”, provoca. “Esta é uma questão vital com a qual ainda lutamos hoje. Os zapatistas no México ou o confederalismo democrático no Curdistão são exemplos atuais de pessoas que tentam isso de maneira impressionante. É uma divisão clássica entre quem pensa que é uma utopia impossível e quem pensa que é difícil, mas possível. Eu mesmo acho que é possível. Mas precisamos considerar os erros do passado. A Revolução dos Bichos e 1984 são análises do que pode dar errado, que podemos usar como guias para evitar esses erros, no processo de fazer um sistema melhor.”

    JAPÃO

    Com mais de 30 livros publicados, Wilson vive atualmente no Japão, onde se tornou uma referência no estilo mangá, mas com um toque ocidental, o que garante sua originalidade. Seu trabalho se divide entre criações próprias e versão de clássicos literários. “Por exemplo, reduzir o romance clássico O Morro dos Ventos Uivantes de cerca de 320 páginas do original para 125 em nossa versão em quadrinhos foi difícil. É fácil fazer mal, é difícil fazer bem. Como você pode resumi-lo e ainda assim manter os elementos-chave? Como você pode fazer uma versão visual acessível e precisa? Como você pode fazer tudo fluir bem, em termos de texto e arte e da relação entre os dois?”

    Questionado sobre como analisa hoje A Revolução dos Bichos e 1984, Wilson é reticente no comentário. “Talvez eu não esteja qualificado para dar uma resposta abrangente”, defende-se, mas logo baixa a guarda. “Mas, para mim, o elemento-chave em ambos os livros é considerar como uma alternativa ao capitalismo pode funcionar e como pode dar errado. Pessoas de direita gostam de vê-los como ataques a Stalin e à URSS e ao que eles identificam como ‘comunismo’. Eles tiram daí a conclusão de que qualquer tentativa de algo diferente do capitalismo sempre falhará, sempre se tornará distorcida e deturpada. Mas isso é o que eles desejam ver lá.”

    Estudioso das artes gráficas, Wilson tem uma divertida definição para explicar a diferença entre o mangá e os conceitos ocidentais de quadrinhos: “Para fazer uma comparação latino-americana, podemos dizer que é como a diferença entre o tango e a salsa: são passos diferentes, estilos diferentes, sentimentos diferentes – mas, no fundo, tudo é dança!”.

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