Governo Lula precisa romper com prática do orçamento secreto, dizem analistas
Em seminário promovido pelo jornal em parceria com Instituto Não Aceito Corrupção, especialistas criticam captura dos recursos públicos por interesses da classe política
A persistente captura de recursos públicos por interesses parlamentares – o orçamento secreto – revela a necessidade de o novo governo promover uma ruptura deste tipo de mecanismo, apontam especialistas que participaram do sétimo seminário “Caminhos contra a corrupção”, realizado pelo Estadão em parceria com o Instituto Não Aceito Corrupção.
A procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziano, o pesquisador da Universidade de Lugano, na Suíça, Fabiano Angélico, e o chefe de reportagem do Estadão em Brasília, Leonêncio Nossa, defenderam que as emendas de relator prejudicam a execução de políticas públicas.
Segundo os analistas, o resgate orçamentário deve passar por planejamento, obediência às instituições e máxima transparência. Eles participaram de um painel mediado pela jornalista Kátia Brembatti, editoria do Estadão Verifica e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Para Élida Graziano, a origem da corrupção vem de uma fragilidade do planejamento. “Sociedade que não planeja aceita qualquer resultado”, disse. Ela acredita que a lei orçamentária deveria ser tomada como a lei mais importante do País.
“O núcleo do desafio é ordenação legítima de prioridades. A gente tem um diagnóstico consensual dos nossos problemas, tem um bom quadro de prognósticos. O problema é a identificação do que vem primeiro, porque os parlamentares se habituaram a criar dificuldade para vender facilidade”, afirmou.
Como mostrou o Estadão, ao mesmo tempo em que a constitucionalidade do orçamento secreto é analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) parlamentares estudam mudar as regras orçamentárias para evitar que o mecanismo seja barrado pela Corte.
O projeto de Orçamento do próximo ano reserva R$ 19,4 bilhões para essas emendas. O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) negocia a formação de uma base no Congresso e já foi avisado de que, sem o orçamento secreto, dificilmente conseguirá passar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição para pagar as despesas do Bolsa Família.
“O custo de barganha agora é em PEC, por isso estão cobrando tão mais caro”, disse Graziano. “O custo de transação do Congresso se tornou mais caro que o teto (de gastos), porque o teto agora tem que abrir uma margem de formas cada vez mais episódicas. São atravessadores do debate orçamentário”, completou.
Já Fabiano Angélico citou três grupos de atores cuja articulação e demanda por recursos podem facilitar mecanismos como o orçamento secreto: os municípios, o Legislativo e os partidos políticos.
No âmbito municipal, Angélico acredita que o pacto federativo precisa ser revisto, de modo a impedir gastos sem controle dos municípios, cuja autonomia sem transparência pode levar à corrupção e ineficiência. Ele cita, por exemplo, a necessidade das prefeituras por recursos. Como revelou o Estadão, grande parte do montante do orçamento secreto é distribuído a prefeituras locais para fortalecer colégios eleitorais dos parlamentares.
Já no caso do Legislativo, Angélico cita o aumento do poder discricionário da mesa diretora do Congresso Nacional que, segundo ele, se fortaleceu de maneira exacerbada. “Para a gente eleger o presidente da Câmara e do Senado é preciso ter mais transparência. Sendo dessa forma (sem fiscalização), há elementos que depois vão negociar com os prefeitos às escuras”, disse.
Sobre o orçamento secreto, o pesquisador aponta que o repasse sem transparência das emendas de relator se tornou um símbolo de corrupção e compra de votos institucionalizada que leva à ineficiência das políticas públicas.
Leonêncio Nossa concorda e aponta o mecanismo como um “dano grave para o sistema democrático”. “Quando você repasse esse dinheiro sem critério, você tira do Executivo o papel de repassar ou distribuir o dinheiro, você está tornando obsoleta políticas públicas sociais que garantiram a melhoria dos indicativos socioeconômicos”, disse.
Fiscalização
Em outro painel do seminário, o auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, Ismar Viana, o deputado federal Israel Batista e o professor associado de Direito da USP, José Maurício Conti, debateram o PLP79/2022, que estabelece uma simetria na forma de fiscalizar dos Tribunais de Contas da União, dos Estados e dos municípios.
A regulamentação também abrange regras de controle interno, do sistema nacional de auditoria do SUS e controle social, quando a sociedade monitora a administração dos recursos públicos.
De relatoria de Batista, o projeto prevê padronizar a organização e a fiscalização dos tribunais, estabelecendo, por exemplo, um prazo máximo de 90 dias para que as contas anuais dos governantes sejam julgadas.
“Isso significa que vai dar rastreabilidade para as auditorias e fiscalizações que acontecem nos Estados. Vamos garantir compatibilidade. O PLP define que o Tribunal de Contas vai dar um padrão para a exposição desses dados, e aí você passa a conseguir operar em conjunto porque falam a mesma língua”, disse. Atualmente os tribunais seguem as leis estaduais, o que resulta em formas diferentes de atuação.
Sem essas regras padronizadas, para o deputado, os Estados conseguem burlar o limite de gastos com pessoal, maquiar dados de endividamento, e até gastos de investimento obrigatório.
“Não se concebe, hoje, um processo em que o juiz diga ao promotor como ele deve agir ou ao investigador como ele deve investigar”, comparou Ismar Batista. Ele reforça que o PLP não cria subordinação dos tribunais regionais ao TCU. “Os tribunais permanecem autônomos. O que se quer é afastar essa preocupação. Há uma crise de legitimidade por um mau funcionamento. O que se quer é que funcionem dentro de um modelo simétrico ao TCU, isso não vai implicar em quebra de autonomia federativa”, completou.
Os especialistas defendem que, com simetria definida, a sociedade pode auditar de maneira mais efetiva. O projeto também prevê que somente servidores concursados possam assumir cargos de auditoria, hoje nomeados por meio de indicação de conselheiros e, muitas vezes, indicados por políticos.
José Conti acredita que o atual modelo isolou os tribunais e criou organizações separadas por regras próprias, o que seria incompatível com a realidade do Brasil, em que uma mesma empresa participa de licitações em diversos estados.
“É preciso que tenham regras mínimas, e essa possibilidade discricionária tem que estar diminuída para não gerar excessos e que não tenha atuação isolada, que resulta na falta de possibilidade de comunicação”, completou.
Os debates seguem nesta quinta-feira no auditório do Estadão e também são transmitidos pela TV Estadão. Na sexta, o seminário ocorre de maneira virtual. O evento ocorre em comemoração ao dia internacional de combate à corrupção, que é celebrado nesta sexta-feira, 9.