“Gente Humilde”: uma homenagem e uma reflexão
“Gente humilde” é uma canção de Chico Buarque feita em parceria com outros. De sua vasta e complexa obra, esta canção é para mim a mais bela e significativa. Ela fala dos anelos que animam a teologia da libertação que confere centralidade à “gente humilde” e reconhece neles uma força histórica, pouco valorizada pelos analistas sociais. Quero homenageá-lo pelos seus 80 anos com uma pequena reflexão a partir desta canção. Nela tudo é verdadeiro.
As coisas verdadeiras e identificadoras das pessoas se realizam para além da consciência reflexa. São forças que atuam a partir do profundo da vida e do universo, do inconsciente abissal e de arquétipos ancestrais que assomam à consciência das pessoas e através delas se anunciam e emergem na história. Digo isso para superar certa interpretação que dá valor absoluto ao sujeito e ao sentido consciente que ele pretende conferir à sua obra. O sentido da produção de Chico Buarque vai além do sentido que ele mesmo, talvez tenha querido dar a ela. Seguramente ele não pretende ter o monopólio do sentido da realidade por ele cantada e descrita. Há múltiplas facetas de sentido que podem ser captadas pelos ouvintes e leitores, que então se fazem co-autores da obra. Transcrevo a canção “Gente Humilde”
“Tem certos dias em que eu penso em minha gente
E sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver sem me notar
Igual a eles como quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem vindo de trem de algum lugar
E aí me dá como uma inveja dessa gente
Que vai em frente
Sem nem ter com quem contar
São casas simples com cadeiras na calçada
E na fachada escrito em cima que é um lar
Pela varanda flores tristes e baldias
Com a alegria que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza no meu peito
Feito um despeito de eu não ter como lutar
E eu que não creio peço a Deus por minha gente
É gente humilde, que vontade de chorar”.
No ofício de teólogo e há 50 anos andando com os dois pés, um na academia e outro nos meios pobres, considero esta obra de Chico a mais comovente e perfeita. Ela traduz à maravilha duas realidades.
A primeira, “da gente humilde”, de seu completo desamparo social. Não há ninguém por eles. Vão em frente com suas poucas forças, sem contar com ninguém, nem com o Estado, nem com a sociedade fechada em seus interesses excludentes de classe, às vezes, nem com as igrejas, embora uma porção da Igreja Católica fez uma opção pelos pobres, contra sua pobreza e por sua libertação. Mas geralmente só contam com Deus e com eles mesmos. As casas, quando as têm, são simples, com cadeiras na calçada, de onde veem o mundo e compartem as amizades. Possuem um senso ético elevado e um sentido sagrado de família. A casa é pobre mas é “um lar”. Flores tristes, raquíticas, semelhantes a eles, enfeitam a casa, mas reina discreta alegria e serenidade.
A segunda realidade que a canção traduz com fina percepção ética e psicológica é a reação de quem não é “gente simples” mas é sensível, humano e solidário com esta condition humaine, no caso, do Chico, Vinicius de Morais e Garoto, co-autores da letra e da música. O compositor pensa “em minha gente”, quer dizer, para Chico, ela existe e está aí, quando para tantos ela não só é invisível como não existe ou é vergonhosamente desprezada. Percebe a diferença de estatuto social: ele vem muito bem de trem; eles, seguramente a pé, caminhando muito. Seu “peito se aperta”, gostaria de viver como eles, anônimos, sem ser notado. Mais ainda: tem “inveja desta gente” por sua coragem de enfrentar sozinha a vida, lutar e sobreviver sem ninguém para ajudar.
E aí irrompe a solidariedade e a compaixão no sentido nobre do termo: como ajudar e estar junto deles? Eclode o sentimento de impotência, “a tristeza no […] peito/ feito um despeito de […] não ter como lutar”.
A Teologia da Libertação, que envolve ainda milhares de cristãos nos vários continentes, começou ao se enfrentar com essa situação relatada por Chico. Esses cristãos assumiram um compromisso libertador, confiando na “gente humilde” e em sua força histórica. Mas a chaga é grande demais. A nossa geração nem a próxima talvez não consiga fechá-la. Assola-nos um sentimento de impotência, mas sem nunca perder a esperança de que um outro mundo é possível e necessário.
É então que recorremos à Última referência. Deve ter Alguém, senhor do mundo e do curso das coisas, que dê jeito nessa humilhação. Mesmo alguém que não crê, mas que não perdeu seu sentido de humanidade, percebe o sentido libertador da categoria “Deus”. E aí, com emoção incontida, canta o poeta: “E eu que não creio peço a Deus por minha gente/é gente humilde, que vontade de chorar”.
A impotência é superada porque triunfa a comoção do coração. Deus é invocado, desesperadamente, como derradeira fonte de sentido. Diante da gente humilde, sofrida, anônima, toda descrença seria cinismo, toda indiferença, desumanidade. O efeito final é esse mesmo: “dá vontade de chorar”. E choramos ou enxugamos discretamente lágrimas de comoção, de indignação e de compaixão.
Não há vez que escute esta canção que não me venham lágrimas aos olhos, pois a verdade é tanta e o sentimento tão verdadeiro que a única reação digna são as lágrimas que, segundo São Paulo, é um dom do Espírito Santo. Isso é puro humanismo, testemunhado também por Jesus de Nazaré que se comoveu diante de seu povo abandonado como ovelhas sem pastor.
E aqui cabe uma reflexão de teólogo sobre “a não crença” de Chico, dita nesta canção. Precisamos fazer um discernimento e resgatar qual é a verdadeira crença e qual, a falsa. Isso aparece claro quando conscientizamos o sentido verdadeiro de “Deus” e onde Ele se deixa encontrar sob outros nomes.
Há os que dizem que não creem, mas se preocupam com a “gente simples”, são sensíveis à justiça e se recusam a aceitar o mundo perverso que encontram. E há os que creem em Deus mas nem veem a “gente simples” e são insensíveis à injustiça social e se inserem tranquilamente no mundo perverso em que se encontram.
Onde está Deus? De que lado Ele se encontra? De tudo o que aprendemos dos profetas e da reflexão cristã, Deus está infalivelmente do lado de quem se acerca da “gente simples”, se compromete com a justiça e se enche de iracúndia sagrada contra esse mundo perverso. Isso porque o verdadeiro nome de Deus é justiça, é solidariedade e é amor.
Quem tem Deus continuamente em seus lábios e O professa em suas palavras mas se distancia da “gente humilde”, se faz mouco aos reclamos da justiça e não se incomoda com a solidariedade, está longe de Deus e falto de sua graça. O Deus em que crê não passa de um ídolo porque não há amor, solidariedade e justiça.
Chico se colocou, sem pretendê-lo, ao lado do Deus vivo e verdadeiro porque se situou ao lado da “gente humilde”. Seu engajamento o situa infalivelmente do lado de Deus e no coração de seu projeto de um Reino de amor, de justiça e de paz.
Mais ainda. Na tarde da vida, quando tudo vai se decidir, o critério será, segundo Jesus (veja o evangelho de São Mateus 25, 41-46), o quanto tivermos sido sensíveis à “gente humilde”, aos famintos, aos sedentos, aos pobres e penalizados desta nossa história. Estes que assim fizeram, ouvirão as palavras de infinita bem-aventurança: ”foi a mim que o fizestes”; “vinde, pois, abençoados de meu Pai e tomai posse do Reino preparado para vós desde a criação do mundo”.
Para mim, bastaria “Gente humilde” para eternizar Chico no coração de todos os que não passam ao largo dos caídos na estrada, mas se detêm como samaritanos, sofrem e choram junto. Chico viveu a mesma experiência de seu patrono Francisco de Assis. Essa experiência o converteu de filho de um rico comerciante a um amigo e companheiro dos mais pobres dos pobres, os leprosos (hansenianos). Ele falava deles como sua “gente poverella”, gente humilde da Toscana. De burguês e membro da “jeunesse dorée” que era, largou tudo e fez-se pobrezinho como eles. Era chamado simplesmente de “o poverello de Assis”.
E agora digo como teólogo: atrás desta “gente humilde” de todos os “poverellos” se esconde o Filho de Deus. Dignificar a “gente humilde”, como fez Chico, é resgatar o melhor da herança humanística de nossa história e do Jesus histórico que viu nos pobres, os primeiros herdeiros de seu sonho. Sempre esteve ao lado do cego, do coxo, do psicologicamente afetado (possessão, na linguagem da época) e se fez ele também um pobre.
Para viver esta dimensão não precisa ser religioso nem crer em Deus. Logicamente se é religioso e crê em Deus se vê reforçado. Mas não é indispensável. Basta ser humano, amante da justiça e um cantador do amor. Nisso se realiza a religião autêntica e aí se encontra o verdadeiro Deus.