• Fragmentação étnica afegã desafia o regime Taleban, há dois meses no poder

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  • 10/10/2021 17:00
    Por Luiz Antonio Araújo, especial para o Estadão, com colaboração de Rodrigo Turrer / Estadão

    A retomada triunfal do Afeganistão pelo Taleban em agosto reavivou uma série de temores que pareciam ter desaparecido entre os afegãos: a imposição de um regime de medo e terror, a perseguição a mulheres e o sufocamento de minorias. Uma dúvida central era se um grupo radical conseguiria governar um país dividido por dezenas de diferentes etnias.

    Na última sexta-feira, um atentado em Cabul confirmou os desafios que o Taleban enfrentará para governar. Um terrorista suicida do Estado Islâmico devastou uma mesquita xiita na cidade de Kunduz, no norte do Afeganistão, matando dezenas de fiéis em uma continuação mortal da campanha do grupo terrorista contra a minoria hazara.

    O massacre foi o segundo do grupo contra uma mesquita em menos de uma semana. É a concretização dos temores dos hazaras afegãos de que a perseguição do EI não fosse controlada sob o governo do Taleban, que já atacou os hazaras no passado.

    Para a maioria dos observadores ocidentais, o caráter teocrático da ordem taleban sempre foi o centro das preocupações. Menos atenção é dada aos laços entre os novos senhores de Cabul e o grupo étnico patane. Essa ênfase na religião não deixa de ser surpreendente: se há algo que mantém os afegãos unidos é justamente o Islã, uma vez que a esmagadora maioria da população é muçulmana. No momento em que as linhas divisórias entre o Taleban e a oposição interna ficam mais nítidas – com a formação de um bolsão de resistência no Vale do Panjshir, no norte do país, onde predomina a etnia tajique -, o peso da diversidade nacional do Afeganistão volta a se sobressair.

    “O Afeganistão é uma colcha de retalhos mutiétnica e ingovernável”, afirma o jornalista Peter Bergen, um dos primeiros a entrevistar Osama bin Laden no Afeganistão e autor de nove livros sobre o país, a Al-Qaeda e o líder terrorista (mais informações na página A11). “O erro americano durante 20 anos foi acreditar que poderia aplicar um conceito ocidental de nação em um país organizado há séculos em tribos e clãs”.

    Localizado no centro-oeste da Ásia, no cruzamento das antigas fronteiras de grandes impérios e culturas, o Afeganistão tornou-se um mosaico de raças e etnias. Mais de 20 grupos étnicos compõem a população afegã. Em razão da inexistência de censos demográficos – o último foi realizado ainda sob a monarquia do rei Zahir Shah, no início dos anos 1970 -, não é possível estabelecer com exatidão o peso de cada um. Há consenso, porém, em relação ao fato de que os patanes são o agrupamento mais numeroso, englobando entre 38% e 42% dos afegãos.

    Os patanes vivem predominantemente no sul e no sudeste do Afeganistão e no noroeste e no centro-oeste do vizinho Paquistão, onde a área que ocupam é conhecida como “cinturão tribal”. Com forte tradição agropastoril – a palavra persa afghan, que deu origem ao nome do país, designa uma vestimenta de pele de carneiro usada pelos patanes – e bélica, esses descendentes de gregos, persas e árabes foram muitas vezes apontados como a espinha dorsal do povo afegão. Sua língua, o pashtu, consolidou-se a partir de dialetos do persa por volta de 100 a.C.

    Embora tenham sido decisivos na consolidação do Estado afegão desde o século XVII e chegado a acalentar a ideia de um Pashtunistão em meados do século 20, os patanes nunca tentaram moldar o Afeganistão a sua imagem. Os reis da dinastia Durrani, que adotaram Cabul como sua capital e foram os primeiros a designar o sistema político do país como “emirado islâmico”, falavam persa e encabeçavam uma corte multiétnica e multicultural.

    “O Afeganistão é um Estado multiétnico. É difícil aplicar o conceito de nação, como é conhecido no Ocidente, a um país como esse, que tem uma organização social tribal e clânica há séculos. O mais correto, nesse país que foi criado artificialmente pelo colonialismo britânico, é pensá-lo em termos de multietnia. Isso é provavelmente o fator que faz com que o Afeganistão seja um Estado disfuncional, criado para separar Rússia e Grã-Bretanha”, reforça Andrew Traumann, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).

    Especialistas em história afegã afirmam que a monarquia sempre absorveu integrantes das minorias étnicas nos negócios de Estado. A guerra civil que se seguiu ao fim da ocupação soviética, em 1989, introduziu os massacres e a limpeza étnica no Afeganistão.

    O general tajique Ahmad Shah Massud, morto num atentado pelo Taleban em 9 de setembro de 2001, era suspeito de massacrar hazaras. Em Mazar-e-Sharif, no norte, unidades taleban e usbeques liderados pelo general Malik Pahlwan se alternaram nos papéis de carrascos e vítimas antes da tomada da cidade pelo Taleban. No Paquistão, refugiados hazaras ainda hoje recusam-se a ir para campos de maioria patane com medo de sofrer atrocidades.

    Quando o Taleban governou o Afeganistão pela última vez na década de 1990, eles enfrentaram forte resistência em todo o norte do país por parte de paramilitares que se ressentiam dos militantes patanes do sul. Essa resistência seria decisiva em 2001, quando as mesmas minorias étnicas, apoiadas pelo poder aéreo dos EUA, derrubaram o regime do Taleban em Cabul.

    Desta vez, no entanto, o Taleban tinha uma nova estratégia pra retomar o poder: alistar as minorias no norte e transformar uma insurgência anti-patane em uma força de combate pan-islâmica contra os infiéis estrangeiros. Comandantes e combatentes do Taleban descrevem um esforço de uma década para recrutar minorias étnicas, preparando o cenário para uma vitória rápida sobre as forças de segurança afegãs em cidade após cidade, até que Cabul capitulou.

    Com a vitória agora nas mãos, o Taleban diz que voltou ao poder mais forte do que na década de 1990, não apenas armado com o equipamento militar do exército afegão fornecido pelos EUA, mas agora com uma rede nacional de combatentes leais para usá-lo, inclusive de outras minorias.

    “O problema é que em dois meses de governo, apenas um integrante de uma minoria étnica, um hazara, foi incorporado ao governo”, escreveu na revista The Diplomat Yatharth Kachiar, professor de Relações Internacionais na Jawaharlal Nehru University em Nova Délhi, e pesquisador das relações étnicas na fronteira do Afeganistão com o Paquistão.

    Em Cabul, o governo central do Taleban também pretende incluir hazaras e outras minorias em seus quadros, segundo relatos da imprensa internacional. Esse movimento pretende atingir três objetivos: estender o ramo de oliveira para os hazaras para acomodá-los e diversificar sua base de apoio, melhorar sua imagem e legitimidade internacional como um grupo inclusivo e um movimento nacional à frente do diálogo intra-afegão e reforçar seus laços com o Irã, de maioria xiita, apesar das diferenças ideológicas”, escreveu Yatharth Kachiar.

    “O pragmatismo do novo governo do Taleban pode se estender aos grupos étnicos não-patanes. Os patanes têm uma característica nacionalista muito particular, que foi se esvaindo e acabou retrabalhada em termos religiosos pelo Taleban. Certamente, a maneira como eles percebem as minorias não deve ter mudado muito, mas, com a necessidade de permanecer no governo, talvez venham a flexibilizar essas ações”, sustenta Renatho Costa, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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