• Flip aposta na pluralidade de vozes ao voltar a ser presencial

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  • 28/11/2022 08:00
    Por Maria Fernanda Rodrigues e Ubiratan Brasil, enviados especiais / Estadão

    A diversidade de gênero e raça e a defesa da literatura como forma de luta social marcaram a 20.ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que terminou na tarde deste domingo, 27, na cidade fluminense. Depois de dois anos com encontros online, motivados pela pandemia da covid, o evento voltou a ser presencial e reforçou uma tendência acentuada a partir de 2018, agora com mais ênfase: dar espaço a uma pluralidade de vozes.

    A escritora mais aguardada, a francesa Annie Ernaux, prêmio Nobel de Literatura deste ano, não decepcionou. Aos 82 anos, enfrentou o calçamento irregular de Paraty, onde parava pacientemente para dar autógrafos e, embora não gostasse, também posar para fotos. Na quinta, 24, à tarde, no exato momento em que a seleção brasileira derrotava a Sérvia (2 a 0) na Copa do Mundo, Annie participou de um debate no Cinema da Praça, onde foi exibido o documentário Os Anos do Super 8, com imagens familiares captadas nos anos 1970.

    Lá, a escritora se emocionou ao ouvir o depoimento de uma professora que, pela primeira vez, reconhecia ter feito um aborto ilegal, situação semelhante à vivida por Annie em 1963, fato que inspirou a obra O Acontecimento. “Estou profundamente tocada com sua história, senhora”, disse a autora, que voltaria a se emocionar no sábado, quando dividiu sua mesa na Flip com Veronica Stigger e voltou ao assunto. “A questão nunca foi de interromper uma gravidez, mas a de ser também livre nas decisões como os homens.”

    Durante pouco mais de uma hora, ela se recordou da deterioração de seu casamento com Philippe, processo silencioso ocorrido durante as filmagens que resultaram no documentário; comentou ainda sobre a crítica que recebeu da extrema direita da França, que não a julga merecedora do Nobel por sua obra considerada “violenta”. “Mas, por fim, sou a primeira francesa a conquistar o Nobel com uma escrita que pode ser uma fonte de liberdade”, disse, para delírio da plateia emocionada.

    O poder libertador da literatura, aliás, inspirou o discurso de outros autores. “A primeira violência contra os rebeldes está na linguagem”, observou a argentina Camila Sosa Villada, uma das autoras travestis (ao lado de Amara Moira) desta edição da feira. “Ela nos é imposta e somos obrigadas a escrever e a ler a partir desse código construído pela violência. Sei disso por ter sido trabalhadora sexual, quando aprendi coisas que não são ensinadas pela família nem pela religião. Isso me fez aprender que o outro sempre pode representar uma possibilidade de violência.”

    O mesmo teor inspirou o discurso de Geovani Martins, que se apoia em sua vivência em comunidades cariocas como fonte de inspiração – e também de defesa. “A literatura é, para mim, uma arma, uma forma de luta contra as limitações que a sociedade tenta me impor”, disse ele, em outra mesa de sucesso.

    Já o chileno Benjamín Labatut, estrela da Flip no sentido de exigências e recusa de dar autógrafos ao público e entrevistas à imprensa, fez uma bela participação ao falar sobre apocalipse, literatura, isolamento, delírio e loucura. Autor de Quando Deixamos de Entender o Mundo, ele defendeu que precisamos aprender a ficar quietos, disse que o cinema é melhor do que a literatura e que as pessoas deveriam reduzir suas bibliotecas a 10 livros. Sobre o silêncio, falou: “O isolamento é fundamental. As pessoas não sabem que existe uma voz que fala no silêncio e, para que se escute, é preciso estar sozinho”.

    A antropóloga francesa Nastassja Martin e a velejadora brasileira Tamara Link dividiram o palco no sábado à tarde em uma conversa honesta e bonita sobre lugares longínquos, mares navegados, ursos, fantasmas, sonhos e a aventura interior que empreenderam em suas caminhadas em busca de superação e outras formas de se estar no mundo.

    E as jovens poetas Alice Neto Sousa, de Portugal, e Midria, brasileira, encantaram o público na noite de sábado, 26, na mesa que tinha o ator e escritor Lázaro Ramos como o convidado mais conhecido. Fazendo performances de seus poemas fortes e políticos, elas deixaram seu recado: enquanto for preciso, vão fazer poemas de resistência, mas também querem pensar outros futuros.

    Best-sellers

    Annie Ernaux foi a autora mais vendida da Livraria da Travessa, a oficial da Flip, seguida por Maria Firmina dos Reis (1822-1917), a homenageada. E também Benjamín Labatut, Ailton Krenak (fora da programação), Camila Sosa Villada, Geovani Martins, Lázaro Ramos, Lilia Schwarcz, Bessora, Nastassja Martin e Saidiya Hartman. A lista reflete a pluralidade do evento: dos 11 best-sellers, cinco são mulheres negras, apenas quatro são homens, um é indígena e outra é travesti.

    “Houve uma confluência cosmopolítica na programação”, disse Pedro Meira, que dividiu a curadoria com Fernanda Bastos e Milena Britto. Paraty recebeu cerca de 25 mil visitantes, segundo a organização.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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