• Fiocruz descumpre promessas em série e só produz 1 de cada 6,5 vacinas aplicadas

  • 10/05/2021 13:00
    Por José Fucs / Estadão

    Em 31 de julho do ano passado, quando o governo anunciou um acordo para produzir no País a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e comercializada pela farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca, era difícil imaginar que a Fundação Oswaldo Cruz, a quem caberia levar a cabo a missão, iria se tornar alvo de críticas generalizadas e até de piadas entre cientistas e profissionais de saúde, por causa de atrasos em série na entrega do imunizante e de previsões fantasiosas feitas por seus dirigentes.

    Ao longo de seus 120 anos de existência, a Fiocruz construiu uma reputação irretocável no Brasil e no exterior, pela qualidade de suas pesquisas, por sua atuação no enfrentamento de epidemias e pela eficiência na produção de diversas vacinas. A expectativa, portanto, era de que a Fiocruz liderasse a produção de vacinas contra o coronavírus, garantindo a agilidade necessária ao processo de vacinação, e adotasse uma postura ponderada em suas previsões de entrega, transmitindo à população um quadro realista sobre as perspectivas de imunização.

    Ainda que o Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo, tivesse largado na frente na corrida pela vacina, ao negociar uma parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac para produção da Coronavac, boa parte da comunidade médica e científica apostava que a Fiocruz, vinculada ao Ministério da Saúde, assumiria o protagonismo na luta contra o vírus.

    Mas, passados dez meses desde a assinatura do primeiro contrato com a AstraZeneca, o que se observa é que a Fiocruz desempenhou até agora um papel secundário no processo de imunização, apesar de ter turbinado a produção e as entregas de vacinas a partir de abril.

    De acordo com números do Ministério da Saúde, das 46,4 milhões de doses de vacinas contra covid já aplicadas em todo o Brasil até 6 de maio, incluindo a primeira e a segunda doses, só 11 milhões, o equivalente a 24% do total – ou uma em cada quatro – foram do imunizante Oxford/AstraZeneca produzido pela Fiocruz. O restante foi de Coronavac. (A vacina da Pfizer/BioNTech importada pelo governo, que começou a ser aplicada na semana passada, ainda não havia aparecido nas estatísticas oficiais.)

    A rigor, a participação das vacinas produzidas pela Fiocruz no total de doses aplicadas até o momento é ainda menor, já que quatro milhões de doses prontas de AstraZeneca foram importadas da Índia e estão somadas à sua produção no balanço do ministério. Descontadas as doses indianas da conta, o saldo de vacinas produzidas pela instituição e já aplicadas na população cai para 7,1 milhões, o equivalente a 15,3% do total ou uma em cada 6,5 doses administradas até agora no País (veja o gráfico).

    Ainda que indiretamente, esse desempenho acabou prolongando o ciclo de contágio, ao limitar o processo de imunização nos primeiros meses do ano, e gerou frustração na população, ansiosa por se “blindar” o quanto antes contra o vírus letal, que já levou quase meio milhão de vidas desde o início da pandemia, em março de 2020.

    ‘Melhor cenário’

    Procurada para falar sobre a questão e outros temas ligados à produção da vacina contra a covid, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, não quis se pronunciar, alegando não ter “disponibilidade na agenda”. O repórter insistiu, mostrando-se disposto a ajustar o cronograma da reportagem, para incluir os comentários e explicações de Nísia, mas não recebeu mais resposta da entidade. Mesmo assim, a reportagem traz no texto abaixo as justificativas da Fiocruz e de seus gestores para a morosidade e os atrasos na produção da vacina, compiladas a partir de declarações e comunicados oficiais feitos nos últimos meses.

    “Até agora estamos praticamente só com o Butantan”, diz o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. “Quando o Butantan fez a parceria com a Sinovac e a Fiocruz com a AstraZeneca, todo mundo acreditava que a Fiocruz iria se dar melhor, mas o que acabou acontecendo foi o contrário”, afirma o biólogo Fernando Reinach, autor do livro A chegada do novo coronavírus no Brasil e colunista do Estadão.

    Os resultados parecem ainda piores quando confrontados com as promessas feitas pelos dirigentes da Fiocruz, que desde o princípio anunciaram projeções muito elevadas para a entrega das doses, desmentidas seguidamente pelos fatos. “Eles sempre tendem a prometer o melhor cenário possível – e na vida não é assim”, diz Reinach. “Nunca acontece o melhor cenário possível.”

    Logo depois da assinatura do contrato inicial, por exemplo, a Fiocruz chegou a falar na produção de 265 milhões de doses da vacina ao Programa Nacional de Imunização (PNI) em 2021. No fim do ano passado, porém, a previsão foi reduzida em 20%, para 210,4 milhões de doses – 100,4 milhões fabricadas com Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) importado da China e outras 110 milhões com IFA nacional, a ser produzido numa nova unidade industrial, que ainda está em construção.

    Em janeiro, a Fiocruz anunciou a entrega de 50 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca até abril e manteve a previsão mesmo quando surgiram as primeiras dificuldades para cumpri-la. No mundo real, o número de doses entregues ao Programa Nacional de Imunização (PNI)no período ficou em 22,5 milhões, menos da metade. Em 5 de fevereiro, a Fiocruz prometeu entregar 15 milhões de doses em março, mas entregou só 2,8 milhões, o equivalente a 18,7% do prometido.

    A entrega de vacinas com insumo nacional, inicialmente prevista para agosto, passou para setembro e agora dirigentes da Fiocruz já falam que só acontecerá a partir de outubro, comprometendo o cumprimento da meta do segundo semestre (leia o quadro).

    ‘Lambança’

    “Promessas não cumpridas diminuem a credibilidade e a confiança nas instituições”, afirmou o ex-ministro da Saúde Nelson Teich, que deixou o governo antes de completar um mês no cargo, por divergências com o presidente Jair Bolsonaro, em um comentário no Twitter. “A gente fica nessa lambança de gerar um otimismo exagerado e de querer deixar a população mais tranquila, mas as informações precisam ter base na realidade”, diz o senador Confúcio Moura (MDB-RO), presidente da comissão temporária do Senado que foi criada em fevereiro para acompanhar as ações contra a covid.

    Um virologista que trabalha num centro de desenvolvimento de vacinas ligado a uma das principais universidades do País, que preferiu não se identificar, conta que as promessas não cumpridas da Fiocruz viraram tema de ironias e comentários maldosos em grupos de pesquisadores e cientistas no WhatsApp. Médicos de diferentes especialidades ouvidos pelo Estadão tiveram reação semelhante. Um deles chegou a defender a privatização da Fiocruz, para torná-la mais eficiente.

    Segundo o virologista, “a grande falha” da entidade foi “vender ilusões” à população em relação à vacinação. “A distância entre a expectativa criada e a realidade é absolutamente frustrante”, afirma. “A Fiocruz deveria ter admitido que a produção da vacina seria um processo muito mais moroso do que se acreditava.” Para ele, as falsas expectativas criadas pela Fiocruz tiveram efeito perverso no planejamento do processo de imunização. “Quando você tem uma expectativa e passa a considerá-la como fato consumado, deixa de buscar alternativas, como a compra de mais vacinas prontas ou de mais insumo importado para envasar as vacinas aqui.”

    Responsabilidade ‘terceirizada’

    Ao justificar os atrasos e as seguidas revisões nas promessas de produção da vacina Oxford/AstraZeneca, a Fiocruz “terceiriza” a responsabilidade pelos problemas. A instituição não admite ter sido excessivamente otimista em suas previsões ou subdimensionado os obstáculos que enfrentaria para cumprir o que prometeu desde o fechamento do acordo com a farmacêutica AstraZeneca, em julho de 2020.

    A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, não quis dar entrevista para esta reportagem, alegando falta de espaço na agenda. Mas, nos últimos meses, a Fiocruz e seus dirigentes apresentaram diferentes explicações para as revisões feitas nas projeções de produção e entrega de vacinas.

    Segundo a entidade, o atraso na entrega das doses produzidas com Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) importado da China, cujo envio estava previsto inicialmente para dezembro e janeiro, mas acabou ocorrendo só em fevereiro, deveu-se a “dificuldades burocráticas e diplomáticas” para a liberação do produto na origem, em razão da falta de aval do governo brasileiro à operação.

    Para explicar o adiamento da entrega das primeiras doses da vacina do começo de fevereiro para meados de março, a Fiocruz alegou que houve a quebra de uma máquina, com descarte indevido de vacinas, além do atraso no envio do IFA chinês. No caso do atraso da entrega de 4 milhões de doses prontas da Índia, praticamente só rotuladas pela Fiocruz, os dirigentes da instituição disseram que, além da repetição dos problemas enfrentados na China, o agravamento da pandemia no país acabou por retardar ainda mais a liberação da mercadoria.

    O mesmo argumento foi usado para justificar o atraso no envio de mais 8 milhões de doses prontas da Índia, produzidas pelo Instituto Serum. “O problema da vacinação contra covid-19 não foi apostar em poucas vacinas, mas conduzir de forma ineficiente as negociações, o planejamento e a execução”, afirmou o ex-ministro da Saúde Nelson Teich no Twitter.

    Em relação ao atraso da produção de vacinas com IFA nacional, os dirigentes da Fiocruz dizem que ele vai se dar devido à “complexidade” da tarefa e à nova tecnologia que está sendo incorporada no processo. Inicialmente prevista para começar em agosto, a entrega das vacinas com IFA nacional agora só deve ocorrer a partir de outubro, de acordo com informações de gestores da Fiocruz e do próprio Ministério da Saúde. Embora os dirigentes da entidade evitem falar sobre o assunto, o atraso na produção da vacina com IFA nacional também tem a ver com a demora para fechar com a AstraZeneca o acordo de transferência de tecnologia, cujas cláusulas estão em discussão desde o ano passado (leia o quadro acima).

    Além de tudo isso, boa parte do problema se deve à postura do governo na pandemia. A posição antivacina do presidente Jair Bolsonaro durante meses acabou dando uma contribuição decisiva para retardar a negociação de imunizantes e o processo de vacinação em massa no País. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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