• Filme ‘O Sal das Lágrimas’ é poema sobre a inconstância dos sentimentos

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  • 03/02/2021 07:36
    Por Rodrigo Fonseca, especial para o Estadão / Estadão

    Ao ser incluído na lista dos dez melhores filmes de 2020 da revista Cahiers du Cinéma, O Sal das Lágrimas (Le Sel des Larmes) viu seu cacife entre exibidores de filmes autorais crescer, despertando um interesse extra na nova geração de cinéfilos e de críticos que, inicialmente, receberam com preocupação um filme de amor aparentemente distante das discussões sobre empoderamento feminino e sexismo. Mas sublinhe o “aparentemente” com tintas fortes, pois é essencial desconfiar de qualquer advérbio ligado a aparências quando se trata de um diretor/autor do quilate do francês Philippe Garrel. Um diretor descrito na Europa como fruto tardio da nouvelle vague, premiado em Cannes por Liberdade, A Noite (1984) e Amante Por Um Dia (2017).

    Sua estética romântica, expressa em um preto e branco cada vez mais requintado, é tudo menos maniqueísta, sobretudo na discussão sobre a microfísica das idiossincrasias masculinas, que o cineasta de 72 anos atomiza sem pena, ao mostrar abusos, irascibilidades e egoísmos numa trama – apontada para estrear aqui no Brasil em abril, distribuída pela Fênix – em que a delicadeza jamais se esvai.

    “Há nesse filme sentimentos muito parecidos com o que vivi aos 20 anos, ainda que os costumes na década de 1960 fossem diferentes, porque ele assume o ponto de vista de jovens, algo universal e perene. Essa narrativa acompanha, com simplicidade, a forma como a juventude ama e deseja”, disse o diretor ao Estadão na Berlinale, onde O Sal das Lágrimas fez sua estreia mundial, em fevereiro de 2019, concorrendo ao Urso de Ouro. “Sou de uma geração que lê, que cresceu lendo de Rimbaud a Totem e Tabu, aprendendo toda a força poética libertadora da palavra. Mas também somos de um tempo que viu as primeiras obras-primas de Godard estrearem em circuito exibidor. E aprendemos com Godard que a imagem nos conduz à liberdade ao dissecar a microfísica do controle. O cinema que eu faço fala de amor porque nele há uma instância de poder. E todo poder, quando abusivo, cai no fascismo.”

    Controvérsias cercam a maneira como Garrel representa o querer, adotando como eixo central as inquietações afetivas de um rapaz que vem para a cidade grande fazer um curso técnico. “A partir da inconstância masculina, tento discutir a institucionalização de cabrestos morais, ao refletir sobre como a monogamia pode ser usada como uma perversa prática de controle e sobre os exercícios da toxicidade afetiva. ‘Tóxico’ é uma palavra que hoje virou moda, mas que precisa ser entendida no planisfério das relações amorosas como algo que supõe submissão e supressão das liberdades e precisamos eliminar essa prática. Amor deve libertar, transcender”, diz Philippe, que hoje comemora o sucesso profissional de seu filho, o ator e também cineasta Louis Garrel, como realizador. “Ele está encontrando uma voz na direção que é particular.”

    Cultuado nos EUA por A Cicatriz Interior (1972) e A Fronteira da Alvorada (indicado para a Palma de Ouro de Cannes, em 2008), filmes citados como referência para diretores da novíssima geração americana como os irmãos Josh e Benny Safdie (de Joias Brutas), Garrel viu O Sal das Lágrimas chegar aos Estados Unidos com sucesso, em plataformas digitais, em janeiro, colhendo elogios por seu roteiro cravejado de lirismo e dor. Ele escreveu o longa em parceria com o escritor e dramaturgo Jean-Claude Carrière, parceiro de Luis Buñuel (1900-1983) em O Discreto Charme da Burguesia (1972) e A Bela da Tarde (1967). “Ele é um roteirista clássico que cuidou dos diálogos e lapidou sobretudo a estrutura dos personagens mais velhos desta história sobre paixões joviais”, disse o diretor, referindo-se a seu protagonista, o estudante, Luc, vivido por Logann Antuofermo.

    Fidelíssimo a seu velho pai (André Wilms), Luc se apaixona por Djemila (Oulaya Amamra) em meio a uma mudança de cidade. Ele se muda para fazer um curso de carpintaria. Mas a paixão pela moça vai alterar sua rotina e liberar sentimentos que vão abrir feridas em sua relação familiar. “Meus personagens são arquétipos da realidade, são traduções da nossa dificuldade diária em viver uma paixão sem psicologizar o ato de amar”, afirmou Garrel, definindo O Sal das Lágrimas como um estudo de nossa sede de aceitação pelo outro.

    No filme, Djemila entra num estágio de exasperação doloroso pelo desatino provocado por uma aceitação submissa ao encanto do amor romântico, amplificado pelo individualismo de Luc. Na sequência mais cálida (e doída) desse poema sobre inconstâncias filmado por Garrel, a personagem de Oulaya (hoje uma das atrizes mais requisitadas da França) vai a um bar, enquanto espera conseguir notícias de Luc, que sumiu de seu convívio. Lá, pede um cigarro a um velho atendente, para aliviar a ausência física de seu amado. O bartender olha a moça nervosa e crava: “Conheci pessoas que enlouqueceram esperando”. O alerta é indigesto e sem tato, mas traduz algo da ordem do cuidado, do carinho, do zelo que Garrel busca debater.

    “Aprendi muito sobre a representação do querer nas telas vendo grandes mulheres diretoras como Chantal Akerman, Agnès Varda e Noémie Lvovsky libertarem nosso olhar dos grilhões de velhas convenções”, explicou Garrel. “O cinema nos leva a romper cabrestos, mas ainda existe muito moralismo instaurado destruindo o transbordamento do amor e das relações sociais.”

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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