Filme é ode a Mastroianni em seu centenário
Ser filho ou filha de pais famosos pode ser um peso. Se isso for verdade, Chiara Mastroianni, filha de Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni, carrega uma tonelada ou duas nas costas desde o berço. Será mesmo assim? Entre outras coisas, Marcello Mio, de Christophe Honoré, que estreia em 19 de dezembro e foi exibido na Mostra Internacional de São Paulo, debate essa questão. O filme chega ao cinema por ocasião do centenário de Marcello Mastroianni, o que lhe adiciona interesse.
De certa forma, apesar de dirigido por seu amigo Honoré (já trabalharam juntos várias vezes), Marcello Mio pode ser visto como uma reflexão da atriz sobre si mesma.
Qualquer psicanalista de esquina sabe da importância do espelho para a formação da imagem própria – Lacan até teorizou sobre uma certa “fase do espelho”. Vendo-se no espelho, Chiara descobre ter traços do próprio pai. É curioso. Se a gente a vê, ela não se parece quase a Marcello, esse rosto tão conhecido. Mas, de repente, dependendo da posição, a gente enxerga Marcello no rosto de Chiara.
E assim ela resolve trabalhar essa semelhança – poderíamos dizer, essa herança – radicalizando-a. Ou seja, tornando-se ela própria Marcello Mastroianni. Veste-se de terno masculino, adota um chapéu (como o do pai em Oito e Meio), óculos e, a certa altura, um bigode postiço. Não está imitando Marcello; está sendo Marcello.
O filme tem um pouco de vaudeville, pois Chiara frequenta pessoas da vida de Marcello Mastroianni, a começar por Catherine Deneuve, que, interpretando a si mesma, faz uma mulher dura, cética, que não liga muito para as esquisitices da filha e acha que são coisas passageiras.
IDENTIDADE
Num filme um pouco mais “sério”, teríamos a divisão de personalidade da protagonista com consequências imprevisíveis. Mas Honoré leva a narrativa numa ambivalência entre o divertimento (mais acentuado) e a dramaticidade de alguém que vê a própria identidade indefinida e portanto ameaçada.
Um personagem a destacar pelo aspecto cômico é Fabrice Luchini, no papel dele próprio, de alguém que adoraria ter sido amigo de Marcello Mastroianni. Pronto. Como ele conhece Chiara, tem esse “amigo” póstumo, agora à disposição.
Chiara flutua também entre dois países, exatamente os da sua mãe e o do pai – França e Itália. Fala os dois idiomas e, num certo sentido, o filme é bilíngue. Não seria exagero dizer que a personagem está em busca de sua língua própria, mesmo sendo fluente em ambas. Claro, é apenas uma metáfora. O indivíduo dominar diversos idiomas, mas precisa ter aquela língua interna, própria, com a qual assume sua posição no mundo e fala consigo mesmo.
A comicidade por vezes volta na trajetória de Chiara. Por exemplo, quando ela, ou ele, Marcello, é convidado a participar de um desses programas de auditório na Itália. Seria um concurso de imitadores de Marcello Mastroianni, cuja imagem volta a estar em evidência por conta do centenário. Ela será um dos “Mastroiannis” e será confrontado a uma atriz que com ele contracenou em Divórcio à Italiana, Stefania Sandrelli, ela própria em cena.
Com tudo isso encaminhado, o desfecho pode soar um tanto banal, mas tem carga simbólica. Se quisesse radicalizar (como Fellini), Honoré poderia ter encerrado com algo semelhante ao desfecho de La Dolce Vita, com o personagem de Marcello Mastroianni (o jornalista Marcello Rubini) não conseguindo entender o que a adolescente lhe diz na praia. Essa citação existe, mas Honoré opta por algo mais solar, talvez mais burlesco.
O filme diverte, talvez decepcione um pouco quem dele espera uma grande homenagem a Marcello Mastroianni, esse ator tão querido, cujo nascimento completa 100 anos em 2024. Marcello Mio é mesmo sobre Chiara, essa bela criatura em busca de si mesma. O filme tem ótimos momentos e outros mais fracos, como acontece com frequência nos trabalhos de Christophe Honoré. Oscila.
Entre os destaques, aponto a visita de Chiara e Deneuve ao apartamento que a família havia habitado em Paris. Também são certeiras as referências na trama a momentos-chave do trabalho de Mastroianni, em especial a La Dolce Vita, o mais citado. Mas também a Noites Brancas, de Visconti, baseado em Dostoievski, e Olhos Negros, do russo Nikita Mikhalkov. Esse passeio de Chiara pela obra do pai é tocante. No todo, Marcello Mio acaba valendo a pena.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.