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  • 01/05/2021 08:00
    Por Gastão Reis

    Confesso meu sentimento de lacuna em relação ao livro “Ficando para trás”, editado por Francis Fukuyama, publicado nos EUA, em 2008, e no Brasil, em 2010, pela Editora Rocco. Justo ele, que causou debates acirrados ao publicar “O fim da História e o último homem” em 1992. No livro mais recente a que me refiro, reina um quase silêncio (incompreensível) dada sua relevância. Neste, ele e um grupo de pesquisadores de renome internacional buscam explicar o hiato entre América Latina e os EUA em matéria de desenvolvimento, que vem se ampliando contra nós. Permite também visualizar a posição do Brasil no contexto latino-americano, embora os ensaístas não toquem em profundidade na singularidade brasileira ao longo do século XIX.

    Não obstante Karl Popper não seja mencionado, eu diria que o fio condutor do livro em tela guarda relação com sua sábia recomendação sobre política em geral: que maus governos durem pouco. Esta simples frase diz muito com poucas palavras. Se ficamos para trás, é porque houve uma grande quantidade de maus governos na caminhada trôpega da América Latina. Mesmo ignorando outros fatores, é inegável que nosso arcabouço político-institucional deixava, e deixa, muito a desejar no atendimento ao justo anseio de prosperidade e justiça dos povos que habitam esta parte do planeta.

    Contrariamente ao que se possa pensar, nossa região não foi sempre a lanterninha do páreo. Por volta do ano de 1800, a renda per capita dos EUA e da América Latina se equilibravam em torno de US$ 525.00. Ao longo do século XIX (1820 a 1870), é que a diferença começou a se ampliar a ponto de atingir hoje uma discrepância em que a americana é cinco vezes maior que a média da nossa. Como se deu essa perda do bonde da História ao longo do tempo?

    As explicações vão das mais simplistas àquelas que refletem as reais raízes do problema. Dentre as que não sustentam, podemos listar: geografia como destino (doenças tropicais, deficiência ou inadequação dos recursos naturais etc); a cultura, entendida como algo que vai do catolicismo à herança ibérica; e influência predatória externa como a presença econômico-financeira dos EUA.

    Os fatores que realmente pesam no distanciamento da América Latina em relação aos EUA em termos de crescimento são de outra ordem. Políticas ineficientes com resultados pífios a longo prazo como a de industrialização por substituição de importações, que não prepararam o país para concorrer no exigente mercado internacional, coisa que o Japão soube fazer. A desigualdade social brutal entra no quadro na medida em que tira legitimidade do sistema político ao refletir o descaso dos governos em relação ao bem comum. Mas o fator de maior peso foi a qualidade das instituições, vale dizer, o arcabouço político-institucional vigente.

    Douglas North, Nobel de Economia em 1993, nos diz que “instituições são as regras do jogo numa sociedade ou, mais formalmente, são as restrições que nós, humanos, estabelecemos para moldar a interação humana”. Elas “definem a estrutura de incentivos das sociedades e, especificamente, da economia”. Mas as instituições podem ser disfuncionais, degenerando em situações tecnicamente denominadas armadilhas institucionais, ou seja, “um esquema geral de formação de normas ou instituições ineficientes, ainda que estáveis”, como nos alerta o economista russo Victor M. Polterovitch. O trágico é que tais desvios de rota, embora reversíveis, podem consolidar-se na vida dos povos até indefinidamente. Rússia e Brasil, dentre outros países, ilustram essa situação em que o povo foi colocado a serviço dos luxos da burocracia.            

    Comparemos o parágrafo anterior ao que nos diz Fukuyama na Conclusão do livro sob exame: “Se os políticos estão dispostos a entortar as regras para conseguirem o que querem, se juízes e advogados aceitam rotineiramente suborno em troca de determinados resultados, se a polícia faz vista grossa quando crimes são cometidos ou os comete ela mesma, então nenhum sistema formal de regras e incentivos pode funcionar adequadamente”. É a cara do Patropi, não é mesmo?

    A falha dos articulistas do livro foi não dar o devido peso ao que havia de único em nosso século XIX, muito diferente dos demais países de língua espanhola. Pessoas a quem respeito intelectualmente deitam falação sobre esse período em que é óbvia a desinformação.

    Tomemos o que nos diz Sergio Buarque de Hollanda, organizador da “História Geral da Civilização Brasileira”, em 10 volumes, lançada em 1960, que nos fala do “império dos fazendeiros” após a chegada da república: “Conviria considerar, aliás, a tendência frequente para atribuir à grande lavoura, escravista ou não, uma avassaladora influência sobre as decisões políticas no Brasil imperial. Tal suposição é de cunho anacronístico, e levaria a recuar até os tempos da monarquia uma condição muito mais típica da Primeira República. A verdade é que o império dos fazendeiros, mas agora dos fazendeiros de áreas adiantadas, porque os outros vinham perdendo cada vez mais sua importância, só começa no Brasil, com a queda do Império.”  

    Considere agora, caro(a) leitor(a), a listagem que Fukuyama  faz na Conclusão sobre o que fazer: boas políticas econômicas, com resultados permanentes a longo prazo; reformas institucionais, que já existiam no Império como voto distrital e a existência de dois partidos, o Liberal e o Conservador, na última década do Império, que tinham programas e votavam de acordo com eles, coisa que não existe na república até hoje; política fiscal responsável, evidente no Império face às taxas baixíssimas de inflação, que permitiam aos escravos manter o valor real de  suas poupanças a partir de 1871. Realmente, descentralização e federalismo não marcaram o Império, mas não tardariam a se tornar realidade sem os notórios desacertos da república.

    Após 13 décadas, a república continua em terreno minado no que tange à redução do abismo que nos separa dos EUA em termos de renda per capita. Patético! De toda forma, recomendo, e muito, a leitura de “Ficando para trás”.

    Errata: No meu último artigo, “Sabedoria em 1824 e insensatez em 1988”, no penúltimo parágrafo da segunda coluna, leia-se: “Militares sob (e não sobre) controle civil.””

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