• Festival da tragédia brasileira encena Nelson Rodrigues

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  • 18/04/2021 07:30
    Por Maria Eugênia de Menezes, especial para AE / Estadão

    Nelson Rodrigues fazia um teatro desagradável. Seu interesse pelos temas mórbidos, abjetos e imorais causava horror às plateias. Depois do sucesso do Vestido de Noiva, dizia que pretendia salvar-se da cretinice criando um teatro que agredisse o espectador. “O teatro é mesmo dilacerante, um abscesso. Teatro não tem que ser bombom com licor.”

    No Brasil à beira do colapso, com milhares de mortos e escárnios políticos a atravessar o cotidiano, encher o palco de loucos, assassinos e canalhas talvez não pareça uma boa ideia. Mas o propósito do dramaturgo – e do diretor Marco Antonio Braz, especialista em sua obra – é justamente esse: combater o incêndio com mais fogo. De domingo (18) até o dia 24, ocorre o Primeiro Festival da Tragédia Brasileira, com leituras encenadas de três peças de Nelson Rodrigues: Álbum de Família; Perdoa-me por Me Traíres; A Serpente, além de dois contos da Vida como Ela É inéditos em livro. A programação, gratuita, estará disponível no Youtube da Cia. de Repertório Rodriguiana.

    “A alucinação que Nelson colocou no palco está aí. Vieram à tona essas pessoas para as quais a Constituição não vale nada. Pessoas para quem o que vale é o que dizem no botequim da esquina, onde elas manifestam todo o seu autoritarismo, ignorância e preconceito. E o Nelson profetizou isso. As pessoas precisam reconhecer essas monstruosidades em cena pra evitá-las”, comenta o encenador, que organiza o festival e dirige a companhia. “Quando ele falava da ‘revolução dos idiotas’ mostrava exatamente isso que a gente está vivendo. Onde é que ficou o ensinamento de que opinião não é conhecimento? As escolas não ensinaram isso?”

    A função pedagógica da tragédia está na própria origem do gênero. Na Grécia antiga, as peças já tinham como propósito ser um instrumento moralizador da sociedade, mostrando o comportamento de personagens nobres ou indignos, e buscando a consequente identificação das plateias. Ainda que carregada de elementos melodramáticos e de muito humor, a obra rodriguiana carrega nas tintas do trágico. “Tanto pela fidelidade ao seu universo como a um projeto estético superior, Nelson julgava imprescindível mover sempre no território da tragédia”, apontou Sábato Magaldi, crítico que foi o principal analista do legado do escritor.

    As peças escolhidas para compor o festival foram criadas em contextos diversos e trazem diferentes usos da tragicidade. Perdoa-me por Me Traíres faz parte do mais numeroso conjunto de criações do artista, o que ele denominou como tragédias cariocas. Aqui, os impulsos psíquicos e a carga mítica aparecem ancorados na realidade social da zona norte do Rio de Janeiro. O espetáculo de 1957 trouxe Nelson pela primeira vez no papel de ator e foi recebido com escândalo e muitas vaias. Para ele, a história da menina órfã que se prostitui e é objeto de desejo incestuoso pelo tio que forçava a plateia a um “pavoroso fluxo de consciência”. Marco Antonio Braz é responsável por uma das mais premiadas montagens desse texto, em 1995, quando trazia a atriz Flávia Pucci em uma elogiada interpretação do personagem tio Raul – papel que ela volta a representar na leitura atual.

    Ainda que tenha sido escrita antes, em 1945, Álbum de Família só estreou 22 anos depois, período em que ficou censurada – tão grande era o número de incestos, obscenidades e crimes retratados. Até pelas dificuldades de encontrar o tom correto para encenar tamanho morticínio, o texto é raramente montado. No festival, Álbum trará Jairo Mattos no papel do patriarca Jonas, um homem que abusa de meninas para conter o desejo pela filha, Glorinha. Situada em um tempo indefinido, a peça talvez seja o mais radical mergulho do escritor no universo mítico, mais baseado em arquétipos do que em situações cotidianas. “Mas convém lembrarmos que na peça, Jonas, esse monstro, está prestes a se tornar senador da República”, pontua Braz. “Durante os 35 anos que estudo Nelson Rodrigues, ouvi dizerem que ele criava absurdos apenas para atormentar o público. Mas e o que estamos vendo agora? Diziam que ele criava personagens caricatas. Mas e a Damares?”, questiona.

    Último texto teatral do autor, de 1978, A Serpente retoma um tema bastante comum em sua obra, a paixão de duas mulheres pelo mesmo homem. Além deste título, a programação do festival inclui dois textos até então desconhecidos: Obsessão Preta e A Sogra Peluda, publicados na coluna A Vida como Ela É, que manteve diariamente no jornal A Última Hora entre 1950 e 1961. “A Sogra Peluda talvez traga o primeiro personagem trans da literatura brasileira, em 1958”, aponta Braz. “Há uma série de críticas à personalidade do Nelson que são pertinentes. Mas sua obra nos dá instrumentos para discutir questões absolutamente contemporâneas que ele denuncia como o machismo, o racismo e a intolerância.” Como complemento à programação do festival, o diretor promove uma conversa com Ruy Castro, biógrafo de Nelson, no dia 26, às 22h. E, no dia 27, no mesmo horário, apresenta uma aula magna sobre a obra do dramaturgo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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