• Fernando Schüler, a justa premiação e a lacuna

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 04/maio 08:00
    Por Gastão Reis

    Foi com sentimento de justa homenagem que tomei conhecimento da concessão a Fernando Schüller do “Prêmio Liberdade de Imprensa 2024” na cidade de Porto Alegre. A formação intelectual dele é invejável. Filósofo, professor universitário, articulista e consultor de empresas e organizações civis. Foi Secretário de Estado no Rio Grande do Sul e diretor do Insper no Rio de Janeiro com pós-doutorado pela Universidade de Colúmbia, em Nova York.

    Ao agradecer o prêmio, no início de sua fala, ele nos fala de um amigo que encontrou no aeroporto, e lhe perguntou o que estava fazendo. “Vou a Porto Alegre ganhar um prêmio de liberdade de expressão”, respondeu. “Mas esse negócio não é perigoso?”, comentou o amigo. Diálogo que dá bem a medida do clima tenso vigente no País. Em seguida, fez um elogio ao ministro aposentado do STF, Marco Aurélio Mello, presente ao ato, por sua coragem de vir a público denunciar os desvios de comportamento do STF, o que inclui o vídeo dele afirmando que Lula foi ressuscitado politicamente pelo STF.

    Ato contínuo, fez menção à norma objetiva do Direito, do contrato político que todos assinamos, que nos fornece a segurança de que seremos julgados por ela e não pelo arbítrio de quem está com as rédeas do poder nas mãos. Cita o caso do deputado Marcel van Hattem, do partido Novo, que tem uma ação contra ele no STF, e pode levá-lo a pagar uma multa diária de 20 mil reais. Uma ação da qual ele ignora o mérito e o conteúdo. Puro surrealismo.

    Schüler nos relembra de Montesquieu que dizia que quando somos julgados pela norma objetiva do Direito, nós temos a liberdade. Caso contrário, seremos julgados pelo governo dos homens e não das leis. Não podemos ser julgados no Brasil pelo que o juiz acha que é uma ameaça à democracia, ou que é um discurso de ódio ou o que é verdade ou Fake News, pois assim caímos no reino da interpretação, que pode levar a graves injustiças de julgamento.

    Cita ainda John Milton, polemista, intelectual e funcionário público inglês, que foi ao Parlamento inglês defender o fim da censura aos livros na Inglaterra. O ponto fundamental de Milton é que a verdade estaria espalhada por aí, em mil pedaços, e que teríamos que lidar com partes dela sem conhecê-la em sua totalidade, só possível no dia do Juízo Final. Os juízes não deveriam fazer a censura dos livros porque eles são falíveis. Portanto, nenhuma autoridade de governo deve ser o árbitro da verdade porque ela pertence a toda a sociedade.

    O premiado se referiu a seu orgulho de pertencer a uma geração que tinha secreto orgulho de nossa democracia, após o fim da ditadura militar de 1964 a 1985. E que imaginava que a reconquista da liberdade fosse um problema já resolvido. E que, de repente, volta à ordem do dia. São, sem dúvida, as decisões monocráticas do ministro Alexandre de Moraes. Cita também John Stuart Mill, no capítulo II de seu livro “On Liberty” (“Da Liberdade”/1859), onde Mill aborda a mesma questão como problema resolvido na Inglaterra por volta de 1850.

    Vai além, e cita ainda as figuras de James Madison e Thomas Jefferson, que provavelmente acabariam censurados no Brasil pelos critérios monocráticos adotados hoje pelo STF. E, de quebra, aproveita para relembrar o ilustre jurista Oliver Holmes, membro da Suprema Corte dos EUA, crítico acerbo do formalismo jurídico, que lhe valeu o cognome de “O Grande Dissidente”. Para ele, a Lei nasceu da experiência em oposição a lógica pura e simples.

    Passemos à questão da lacuna, que também já foi minha até os 40 anos de idade. Foi nessa idade que levei para ler nas férias a trilogia “A História de Dom Pedro II – Ascensão, Fastígio e Declínio” do diplomata historiador Heitor Lyra, agora relançada em excelente volume único. Nessa instigante leitura, confirmei minhas suspeitas de que a História do Brasil estava mal contada, omitindo fatos que precisavam voltar à tona para que a verdade tivesse vez. E pudéssemos recalibrar nossa autoestima tão mal tradada pela república.

    Ao longo da exposição do Fernando Schüler, pela quantidade de citações de autores relevantes de língua inglesa em temas de ordem político-institucional, eu senti a falta de exemplos de nossa bela evolução nessa área ao longo do Império. E fiquei com a sensação, salvo equívoco meu, de que Schüler tinha a mesma lacuna minha em relação à nossa História.

    Após a leitura da obra de Lyra, passei a estudar em profundidade os tempos da dita colônia e do Império. E o quadro que passou a emergir foi muito diferente daquele contado pelos livros tradicionais de história. Pouco se fala de que a liberdade de expressão, pensamento e imprensa estava consagrada em nossa constituição de 1824. E que foi rigorosamente observada por Dom Pedro I e Dom Pedro II. Ou seja, a ausência de censura e a possibilidade de cobrar do governo suas falhas eram garantidas no texto de nossa primeira constituição. Interessante notar que isto se deu antes de 1850, data de que nos fala Schüler ao relatar o caso inglês na luta contra a censura.

    Também passou em brancas nuvens uma frase exemplar de Dom Pedro II sobre a liberdade de expressão. Dizia ele: “A imprensa se combate com a própria imprensa”. O notável desta frase é que ela embute o incentivo ao debate civilizado, coisa que a república mandou às favas em vários períodos da história republicana. A luta e orgulho da geração de Schüler pela redemocratização, vitoriosa em 1985, foi apenas mais uma dentre outras do passado.

    Vergonha mesmo foi a de um País como o Brasil que, após 63 anos de ampla liberdade de expressão, pensamento e imprensa ao longo do Império, tenha sofrido essas recaídas, inclusive a mais grave pelo STF(!), ao longo de nossa história republicana sem compromisso com o interesse público. Hora de meditar sobre a crônica incapacidade de a república manter os valores que ela diz defender e preservar. O parlamentarismo com monarquia está ao nosso alcance, de volta a um regime que soube cumprir com sua palavra e nos garantiu a liberdade e o respeito ao dinheiro público.

    O legado da herança luso-afro-indígena até 1889:

    Últimas