• Fatos Históricos vistos pela metade

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  • 07/set 08:00
    Por Gastão Reis

    Qual não foi a minha surpresa quando tive acesso à seguinte informação: “Brasil Monárquico – O Silêncio Constitucional – Após a independência brasileira, a escravidão permaneceu um pilar da nova nação. Desde então, um conjunto de códigos e práticas policiais segue sendo a base do racismo institucional”. A direção é de Joel Zito Araújo. A data original é de 17/11/2023. O documentário tem como título geral dos 5 episódios “A Ética do Silêncio”. Afirma ser “Um estudo sobre o racismo estrutural brasileiro a partir dos fundamentos jurídicos e policiais da opressão racial, da desigualdade e de lutas por direitos de cidadania no País”.

    Ato contínuo, busquei uma entrevista feita por Regina Zappa com Joel Zito Araujo, que vai mais fundo nas colocações dele sobre a persistência do dito racismo estrutural brasileiro. O ponto central é o apagamento da contribuição negra na construção de nossa História. Ao se referir à Princesa Isabel como A   Redentora, afirma que a abolição é vista como um gesto de generosidade dela. Segundo ele, essa versão não tem nada a ver com a realidade. A abolição teria resultado da liderança intelectual negra ao longo do processo.

    Aqui surge um primeiro equívoco. Isabel era abolicionista desde menina. Sua vida foi dedicada, em grande medida, a lutar pelo fim da escravidão. Além disso, muitas senhoras brancas, seguindo o exemplo de Isabel, se empenharam com afinco na luta pelo fim da escravidão. Cabe mencionar ainda as alforrias, em grande quantidade, ter sido um fato quase que só nosso, incomum em países onde havia a escravidão como nos EUA. No fim do período colonial, em Minas Gerais, numa população de cerca de 400 mil almas, 40% já eram de pessoas forras de origem africana.

    Na entrevista, é ignorada a firme atuação da Princesa Isabel na promulgação da Lei do Ventre Livre, de 1871(!), e seus efeitos positivos sobre a população escrava nas duas décadas seguintes até a assinatura da Lei Áurea, que libertou os restantes 20% da população de origem africana ainda escrava. Na primeira matrícula geral de escravos do censo de 1872, seu número era de 1.510.806, que caiu para 720.000 na última matrícula geral, de 30.03.1887, uma queda de mais de 50% no total de escravos no curto período de 15 anos.

    O entrevistado parece ignorar o artigo publicado em O Globo (“Cadê a elite negra na educação?”, 5.12.2008), de autoria da Profa. Maria Lúcia Rodrigues Müller, doutora em educação pela UFRJ e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação na Universidade Federal de Mato Grosso. Ela se reporta às fotografias mostradas no livro “A Cor da Escola – Imagens da Primeira República”.

    O fato notável nessas fotos do início do século XX é a presença de professores negros, inclusive como diretores e vice-diretores, no Rio de Janeiro e em Mato Grosso. Eles chegaram a compor cerca de 20% dos quadros do magistério nesses estados. A partir do final da década de 1920, essas fotografias de formatura vão embranquecendo quase desaparecendo a presença de professores e de alunos negros e mulatos.

    É sintomático que essa esmaecida presença negra e parda nas fotos tenha se dado justamente no período mais agudo do discurso eugenista republicano. Era enfatizada a necessidade de embranquecer a população para que o Brasil fosse capaz de se desenvolver e atingir patamares civilizacionais superiores. Esse discurso tomou conta de parte significativa da intelectualidade de então. A gravidade desse enquadramento mental dispensa comentários a respeito de seus efeitos sobre a queda posterior da presença da população negra e parda nos bancos escolares e no magistério. E deixou nossa autoestima como povo no nível do tornozelo.  

    A velha lenga-lenga de que o Brasil foi o último país a libertar os escravos ignora o fato de que, no Brasil, o processo foi paulatino, bem diferente do caso americano. Lá, o país entrou numa guerra civil em que morreram 630 mil americanos, número jamais igualdado em guerras posteriores de que participaram os americanos, como a Segunda Guerra Mundial ou mesmo a trágica experiência do Vietnam em que saíram de lá com o rabo entre as pernas. O racismo os levou à pior guerra que tiveram.

    Quando se lê o título do documentário, “Brasil Monárquico – O Silêncio Constitucional”, fica o sabor de que a monarquia foi silenciosa sobre a questão, omitindo-se o fato de que a omissão no trato da questão foi muito mais da república. A política do embranquecimento, levada a efeito, é obra republicana. Não obstante, o cineasta Joel Zito, afirmou, com acerto, que a república foi um movimento para manter a escravidão. Logo, a desigualdade.

    Francisco Glicério, fundador e depois presidente do Partido Republicano Paulista, em 1872, foi explícito: “Nosso objetivo é fundar a república e não libertar os escravos”. Esta frase revela a raiz da política do embranquecimento e da persistente desigualdade que marca a sociedade brasileira. Pelo jeito, o documentário não põe o dedo na ferida sobre a responsabilidade da (dita) repú-blica na manutenção da desigualdade, após mais de 130 anos de implantada, o dobro do tempo de duração do Império.  

    Importante relembrar a posição de Dom Pedro I, no seu leito de morte, quando ditou uma carta aberta aos brasileiros em defesa da abolição da escravidão. É o que nos informa Mauro Magalhães, meu colega articulista aqui no Diário de Petrópolis, em seu artigo “Dom Pedro I e a Independência”, em 4/9/2024. Esta foi uma luta da dinastia de Bragança, que resolveu o problema, em 1888, com a neta dele, Isabel, ao assinar a Lei Áurea. Antes, foi precedida de várias providências em prol da libertação dos escravos.

    Não só isso, a liberdade de imprensa, tão desrespeitada pela república, foi preservada no Primeiro e no Segundo Reinados, respectivamente por D. Pedro I e D. Pedro II. Ela foi um poderoso instrumento para que jornalistas negros e mulatos exercessem seu protagonismo na luta contra a escravidão. Se houve, e foi mantido, o protagonismo negro na luta pela liberdade, suas vozes não foram silenciadas pela monarquia. E sim pela dita república. Simples assim.

    **Sobre o autor: Gastão Reis é economista, palestrante e escritor

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