• Falsa tempestade em copo d’água

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  • 30/01/2021 07:00
    Por Gastão Reis

    A grande mídia e até as redes sociais parecem ter perdido visão de médio e longo prazos. Mergulharam no curto prazo, correndo o risco de se afogarem no imediatismo. A tempestade em copo d´água, criada pela grande mídia e colunistas diversos em relação à proposta de algumas grandes empresas de adquirir vacinas, doando metade, e usando as restantes para imunizar seus funcionários se enquadra nessa visão de curto prazo.

    A coluna do Ancelmo Gois, de 26.1.2021, em O Globo, traz uma nota intitulada “Palpite infeliz”. Menciona o presidente da Firjan, Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira, que vê na iniciativa uma postura infeliz dos empresários por buscarem se antecipar aos grupos de risco como profissionais da saúde e idosos. Eduardo citou a famosa frase atribuída a Oto Lara Resende por Nelson Rodrigues, “O mineiro só é solidário no câncer”, e faz uso dela, adaptada às atuais circunstâncias, para ampliar seu impacto. Para ele, “o brasileiro não é solidário nem na Covid-19”. Será mesmo? Vejamos.

    O empresariado brasileiro, em diversas situações de calamidade, já deu provas de sua solidariedade ao contribuir financeiramente e com gêneros de primeira necessidade para amenizar o sofrimento alheio, inclusive organizando mutirões para prestar socorro às vítimas. O próprio Eduardo estava entre aqueles que se cotizaram para construir casas de boa qualidade, em terreno também doado por empresário, para moradores do Cuiabá, em Petrópolis, que haviam perdido tudo na tragédia da tromba d´água de 11 de janeiro de 2011.

    A falha de visão nessa questão é ver os empresários como se estivessem tentando furar a fila para vacinar antes seus funcionários e a si mesmos. Diferentemente do Patropi nessas tristes últimas décadas, empresas de grande porte trabalham com horizontes de planejamento de longo, médio e curto prazos. Sabem perfeitamente que não vão obter essas vacinas de imediato. Os grandes laboratórios farmacêuticos que as produzem já deixaram claro que a prioridade vai para governos e grupos de alto risco. Uma vez atendidos estes, comprar vacinas, doando a metade ao SUS, é uma contribuição bem vinda ao País, aliviando inclusive o esforço monumental do governo em atender a imensa população brasileira de mais de 210 milhões de almas.

    O ministro Paulo Guedes usou uma feliz metáfora ao dizer que o braço da saúde vacinado vai contribuir com o braço da economia para agilizar sua recuperação. Bom lembrar que o País vem colecionando décadas perdidas, com maior ou menor intensidade, desde 1980. E que isso resultou do baixo nível de investimento agregado responsável pela reduzida criação de emprego e renda com efeitos devastadores já conhecidos, inclusive mais pobreza e mortes. Guedes tem a seu favor a redução da Selic a 2% ao ano, tornando atrativo o investimento na economia real, fazendo a taxa de juros encolher-se ao seu devido nível. Ou seja, situar-se bem abaixo da taxa de retorno do capital, pondo fim à insana zona de conforto do rendimento financeiro.

    A crítica pertinente de um líder empresarial deveria ser direcionada ao setor público, mais nos níveis estadual e municipal do que no federal. O destino dado por certos estados e municípios, Rio de Janeiro e Amazonas/Manaus entre eles, às polpudas verbas recebidas para a construção de hospitais de campanha fala por si mesmo. O correto seria afirmar que não é o brasileiro que não é solidário nem na Covid-19, mas sim certos extratos, nada pequenos, da administração pública em determinados municípios, estados e até na união.

    As mazelas do setor público vão além. O STF, além de tentar vacinar seus membros furando fila, em boa hora abortada, ainda nos surpreendeu com a decisão de ser inconstitucional a redução proporcional de jornada e salário no setor público em geral. Desconsiderou o artigo 5º da constituição, que garante a todos igualdade de tratamento perante a lei. Impediu, assim, o corte imperioso de despesas nas três esferas de governo. O congresso, por sua vez, pouco fez, em dois anos(!), para agilizar as reformas administrativa e tributária.

    A questão central para um país das dimensões do Brasil é o agravamento da desindustrialização a ser denunciada pelos empresários da área. Em dois artigos meus no Estadão, “A jabuticaba (amarga) da indústria”, de 05.09.2015, e “O encolhimento (assustador) da indústria”, de 30.09.2015, eu relatava, com números, o desastre da brutal perda de substância industrial do País de 2010 a 2016. Pois bem, Glauco Arbix, coordenador do Observatório de Inovação da USP, nos informa que o processo se agravou. E muito. Entre 2015 e 2020, 36.600 unidades industriais fecharam, ou seja, 17 fábricas a menos por dia!

    A preocupação dos empresários em abrir espaço para a retomada, o quanto antes, da atividade industrial é legítima. Não basta salvar vidas hoje, é fundamental salvá-las também amanhã. Keynes nos relembra que “a longo prazo, todos estaremos mortos”. Mas isso não nos autoriza a aumentar o número de mortos no futuro. Desemprego e fome certamente viriam, e não são o melhor caminho, pois seria perpetuar a tragédia que o País vive hoje.

    Na verdade, o posicionamento desses empresários em comprar vacinas no seu devido tempo, doando metade delas, é um compromisso de solidariedade com a população brasileira. Portanto, não cabem generalizações apressadas sobre o comportamento dos brasileiros face à Covid-19”.

    Um debate maduro, sem vaidades pessoais, exige boa-fé das partes envolvidas. Importa menos quem tem razão e bem mais a melhor solução oriunda da troca de ideias para os angustiantes problemas do País. Este foi o espírito que presidiu este artigo. E das empresas que se dispuseram comprar e doar vacinas. Tempestade em copo d´água, ainda por cima falsa, veio em má hora. Não soma, subtrai.

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