Fado em Cidades Históricas: “Não há ninguém que fique indiferente ao som da guitarra portuguesa”, diz a musicista Marta Pereira da Costa à Tribuna de Petrópolis
O Festival Fado em Cidades Históricas teve início oficialmente às 11h deste sábado, no Palácio de Cristal. A manhã foi dedicada a uma programação voltada para o público infantil, com o Teatro de Bonecos. À tarde, está programada a Corrida de Caravelas com contação de histórias, prevista para às 14h30.
Durante hoje e amanhã, os visitantes poderão desfrutar da feira ao ar livre, que apresenta uma variedade de opções, incluindo artesanato, gastronomia, vinhos, porcelanas e livros. Além disso, ainda neste sábado, serão realizadas palestras abordando temas como os laços entre Brasil e Portugal, ministradas por Natália da Paz às 14h30, e sobre Dom Pedro enquanto musicista e compositor, apresentada por Rosana Lanzellote às 15h.
A parte musical do festival terá início às 16h30, com a apresentação de João Felippe, representando a cena musical local de Petrópolis. Em seguida, às 18h, Hamilton de Holanda, do Rio de Janeiro, subirá ao palco. Às 19h30, será a vez da fadista portuguesa Ana Moura. O encerramento do primeiro dia do festival será feito pelo DJ MAM, a partir das 21h15.
Ao longo do fim de semana, o evento gratuito e aberto ao público celebrará a cultura lusófona com uma programação diversificada. A curadoria é de Connie Lopes, conhecida por sua contribuição para o festival Back2Black.
Entre os artistas presentes no festival estão nomes como Ana Moura, Raquel Tavares e Marta Pereira da Costa, esta última a primeira mulher a tocar profissionalmente guitarra portuguesa no fado em nível mundial. Marta se apresentará neste domingo (19), às 17h30, em colaboração com a violonista Samara Líbano.
Em entrevista à Tribuna de Petrópolis, Marta Pereira da Costa compartilhou detalhes de sua trajetória musical, desde o surgimento de sua paixão pela música até suas influências, destacando a pianista Maria João Pires.
“Antes de descobrir a guitarra, o meu sonho era ser pianista, pianista como a grande pianista portuguesa Maria João Pires. Eu toco piano desde os quatro anos e esse era o meu sonho, sempre foi viver da música, seguir música, aprender música, tocar música. A guitarra portuguesa veio mais longe, aos 18 anos, porque o meu pai é um apaixonado por fado e pelo som da guitarra portuguesa e me falou que gostava que eu aprendesse a tocar e gostava de me ouvir a tocar. E eu, como tinha muita curiosidade em aprender todos os instrumentos que conhecia, disse-lhe que sim, por que não, vamos descobrir a guitarra portuguesa.” Marta teve a sorte de aprender com mestres como Carlos Gonçalves, guitarrista da Amália Rodrigues, e de ter contato com muitos guitarristas importantes na história da guitarra portuguesa, como Mário Pacheco e Fontes Rocha. “Infelizmente, não conheci o Carlos Paredes, que também é uma grande referência para mim, mas eu acho que desde que eu descobri a guitarra portuguesa que me apaixonei verdadeiramente pelo conhecimento e comecei com uma vontade muito grande de querer aprender e saber tudo para ontem.” Apesar de ter estudado engenharia civil e trabalhado na área por oito anos, sua paixão pela música prevaleceu. “A vontade de seguir música esteve sempre lá, mas a coragem para arriscar e largar uma profissão certa por algo que é incerto, demorou um pouco,” conta.
Marta Pereira da Costa fez história ao ser a primeira mulher a gravar um disco de fado na guitarra portuguesa. Ela reconhece a importância de pioneiras como Luísa Amaro, esposa de Carlos Paredes. “Antes de eu descobrir a guitarra portuguesa, ela, o maior nome da guitarra portuguesa, já tocava, mas não no fado, são questões distintas,” explica.
A grande virada na carreira da musicista aconteceu quando ela foi convidada por seu então marido, o fadista Rodrigo Costa Félix, para gravar um disco de fado, sendo a primeira mulher a tocar guitarra portuguesa em um disco do gênero. “Seria o primeiro disco gravado na história do fado e da guitarra portuguesa acompanhado por uma mulher. Eu, na altura, ainda estava muito no início e nem me sentia preparada para o fazer, mas aceitei o desafio sem qualquer pressão, porque se também não ficasse em condições, se o trabalho não ficasse em condições, ele chamaria outro guitarrista mais experiente para fazer o disco e eu, nesse período, aprendi muito.” A formação musical de Marta contribuiu para os arranjos e introduções para os fados gravados, resultando em um trabalho que ganhou o prêmio de melhor disco da Fundação Amália Rodrigues. Este marco na sua carreira a motivou a deixar a engenharia e as aulas de piano para se dedicar integralmente à guitarra portuguesa. Desde 2012, a musicista vem acumulando diversas experiências na música.
Ao iniciar sua carreira, a portuguesa não se preocupava com seu pioneirismo. “Quando comecei a tocar no fado nem liguei se era única, se não era única, queria aprender e evoluir” diz ela. Hoje, Marta sente a necessidade de inspirar e apoiar outras mulheres que estão começando a tocar guitarra portuguesa. “Sinto essa responsabilidade de lhes passar todo o meu empenho, toda a minha dedicação com a guitarra, toda a força para elas também seguirem um caminho de empenho, porque nos primeiros anos é muito difícil, não se consegue, de repente, obter resultados fantásticos. É preciso muita persistência, muita repetição, dores nos dedos, porque as cordas são de aço e com uma tensão muito grande. Nós mulheres temos a pele um pouco mais fina que os homens [risos], então é mais doloroso tocar este instrumento, mas eu acho que vale a pena qualquer sacrifício, porque a recompensa é muito grande.”
Questionada sobre o papel da guitarra portuguesa no fado, a artista ressalta que o instrumento deve dialogar intimamente com a voz do fadista. “Ele [o fadista] está a cantar, está a estilizar, e a guitarra portuguesa tem que conversar com a voz, tem que encaixar, é quase como se fosse uma pergunta-resposta,” explica Marta. “Tem que encaixar as suas frases nos intervalos entre a voz; é uma linguagem muito específica.”
Ela enfatiza a importância das Casas de Fado em sua formação: “É a melhor escola, é ali que se aprende a acompanhar, que se aprende o repertório vastíssimo dos vários fados que existem.” Marta, no entanto, decidiu seguir um caminho distinto, dando à guitarra portuguesa uma voz mais livre. “A guitarra quando está a acompanhar o fado tem realmente essa função e tem que cumprir o seu papel, mas podendo ser solista, podendo estar livre para cantar e para encantar, eu acho que a guitarra portuguesa tem um timbre muito especial, não há ninguém que fique indiferente ao som da guitarra portuguesa, além de ser um instrumento lindíssimo e que merece esse destaque, merece esse destaque enquanto voz, enquanto voz única e que é capaz de ser conhecida em qualquer canto do mundo,” afirma.
Um dos aspetos que mais chama atenção no fado é a maneira como os artistas invocam sentimentos para dar vida às composições. Questionada sobre como descreve o sentimento do fado e como ele se manifesta em suas interpretações, a artista conta que coloca o coração em cada nota. “Eu acho que eu tento ser natural e eu gosto muito de partilhar aquilo que eu sinto com quem me está a ouvir. Eu sou uma pessoa muito transparente, não procuro ser mais do que aquilo que sou, procuro todos os dias ser melhor, isso sim, mas aceito a fase em que me encontro e todos os dias damos mais um passo em frente, portanto a minha forma de interpretar é pôr o coração em primeira nota, é sentir cada música como se fosse única, a primeira vez que estou a tocar, da primeira à última nota, do primeiro silêncio ao último, cada intenção é sentida no corpo e na guitarra, eu acho que as pessoas que me ouvem e veem conseguem sentir isso, essa emoção que eu sinto e que quando estou a tocar guitarra chega ao público que me está a ouvir”, compartilha.
Sobre o que a inspira para além da música, as artes, a literatura, os poetas portugueses, a musicista conta que procura ser inspirada pela vida. “Por aquilo que vejo, por aquilo que sinto, por aquilo que cheiro…Agora esta caminhada até Petrópolis, caminhada não, viagem de carro até Petrópolis, foi um passeio lindíssimo pela serra, isso tudo me inspira. Eu ouço música, tenho uma banda interna na minha cabeça com música que me vai ocorrendo, como é que eu posso explicar? É tudo muito espontâneo, eu vejo qualquer coisa e imagino, eu tenho muita música na minha cabeça que às vezes é difícil passar para o instrumento. Quando tocava piano não conseguia fazer e sentia-me muito frustrada por não conseguir compor ao piano, vinha de formação clássica que é muito mais, como se diz, mais, não é formatado, mas é mais, temos que ler as partituras, na minha escola há muito pouco espaço para o improviso e como a guitarra portuguesa é por tradição oral, tentativa e erro, ver e tocar já há mais abertura para explorar, para arriscar e passar para o som aquilo que nos vai na cabeça. Eu posso ser inspirada por algo que leio, por algo que vejo, por um pôr-do-sol, pelos meus filhos, os meus amigos e como sou assim tão transparente, aquilo que ouço, acho que passa tudo para a minha música”, explica.
Ao abordar sua visão sobre o papel da guitarra portuguesa no cenário musical, a artista enfatiza a importância de levar esse instrumento para além das fronteiras do fado tradicional. “Eu acho que a guitarra portuguesa deve ser levada para o mundo e ser dada a conhecer como, por exemplo, bandolim no chorinho, ou como guitarra flamenca no flamenco, ou bandoneon no tango. Uma das formas é criando pontes, é levando a guitarra portuguesa a cruzar-se com outros instrumentos”, destaca.
Entre as suas colaborações, destacam-se parcerias com Toquinho, Hamilton de Holanda e Jaques Morelenbaum. “A experiência com esses três grandes nomes da música brasileira foi incrível,” relembrou Marta. Este ano, ela lançou seu segundo álbum, “Sem Palavras,” em parceria com o pianista cubano Ivan Melón Lewis. O álbum, totalmente instrumental, é uma declaração de amor aos seus filhos e também ressalta o valor do trabalho árduo e da persistência na busca pelos sonhos. “É uma declaração de amor para eles, por tudo aquilo que eu lhes quero mostrar, que é preciso lutar pelos nossos sonhos, que não se consegue nada sem trabalho e que temos que acreditar em nós, e eles veem isso diariamente no meu trabalho, quando estão comigo, veem isso nas viagens e no empenho que eu ponho em cada projeto. Quero que eles sigam os sonhos deles, que eles procurem aquilo que lhes faz feliz. Nada se consegue sem trabalho. Por isso, vai ser sempre preciso muita dedicação, alguns sacrifícios, e é isso que eu lhes passo neste tema”, explica.
Ao descrever o repertório do álbum, Marta menciona sua vontade de explorar diferentes influências e estilos musicais, citando composições próprias como “Memórias” e “Dia de Feira”, que representam homenagens pessoais e momentos marcantes em sua vida. Além disso, destaca a importância de levar a guitarra portuguesa para novos territórios, como demonstrado na escolha de temas como “Verdes Anos” de Carlos Paredes e “Summertime” de George Gershwin.
Sobre sua apresentação no Fado em Cidades Históricas em Petrópolis, neste domingo (19), às 17h30, Marta expressa entusiasmo. “É a primeira vez que eu venho a Petrópolis. O caminho para cá chegar já foi deslumbrante, a entrada da cidade e também a vista do meu quarto é incrível. Espero poder explorar a cidade. Sei que D. Pedro II cá assentou em Petrópolis, por isso é a cidade imperial; vinha todos os verões passar férias aqui. Por isso tem muita história. Sobre a apresentação, vai ser um encontro incrível entre dois instrumentos, o violão de sete cordas da fantástica Samara Libano e a minha guitarra portuguesa. Nós preparamos este encontro com muito empenho e todo o carinho. O festival é gratuito, então todos estão convidados”, diz.
O Festival Fado em Cidades Históricas acontece neste fim de semana, dias 18 e 19 de maio, sempre a partir das 11h, no Palácio de Cristal. Toda a programação é gratuita e aberta ao público.
Leia também: Confira a programação do Festival Fado em Cidades Históricas