Fabiane Guimarães: ‘A boa literatura está em todos os lugares’
Em Brasília, no final dos anos 1980, Damiana é contratada para trabalhar na residência de um casal rico. Logo fica claro que eles têm um plano e que esse plano a inclui: ser barriga de aluguel. Aconselhada por uma prima, Damiana entra no perigoso mundo das mulheres que alugam seus corpos para gerar o filho dos outros.
Segundo romance de Fabiane Guimarães, Como Se Fosse Um Monstro usa elementos da literatura policial para construir suas tensões e viradas.
Num cenário de desolação econômica, a brutalidade da barriga de aluguel é intercalada pelas perguntas que, hoje, a jornalista Gabriela faz a Damiana. Costurando passado e presente, Fabiane tenta dar voz a uma “perspectiva não tradicional” da maternidade, quebrando “a ideia de que esse é o destino biológico das mulheres, e que não ser mãe é uma decisão egoísta e horrível”.
Na entrevista a seguir, a autora goiana fala sobre a escolha da temática, as decisões estéticas e políticas de seu projeto literário e as influências de autores como Luiz Alfredo Garcia-Roza, Agatha Christie e Fred Vargas. Como Se Fosse Um Monstro discute a questão da barriga de aluguel no contexto brasileiro entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990.
A certa altura, o narrador deixa claro: a Damiana bastaria “se deixar ser colonizada por uma criança alheia”. Por que esse tema e essa época?
Eu sabia que queria escrever sobre a maternidade de uma perspectiva não tradicional, quebrando um pouco com a ideia de que esse é o destino biológico das mulheres, e que não ser mãe é uma decisão egoísta e terrível. A ideia de contar a vida de uma barriga de aluguel surgiu por acaso, foi uma daquelas ideias relâmpagos, e quase imediatamente pensei nesse recorte temporal. Apesar de ter nascido em 1991, eu me lembro muito bem dos escândalos dessa época, envolvendo o tráfico e o sequestro de crianças, como o famoso Caso Pedrinho, que aconteceu aqui em Brasília, e um esquema de tráfico de bebês em Curitiba. Imaginei que esse seria o cenário perfeito para a história que eu queria contar.
Como Se Fosse Um Monstro tem duas personagens principais, que conduzem os eixos temporais da história: Damiana, barriga de aluguel, e Gabriela, jornalista que a entrevista para um livro. Como você pensou essas personagens e a dinâmica entre elas?
As duas personagens “nasceram” juntas, com o perdão do trocadilho. Ao desenvolver a história da Damiana, foi inevitável não conectar a repercussão de suas ações no presente, na figura da Gabriela. Para mim, as duas mulheres representam dois lados de uma mesma decisão: a de controlar o próprio corpo, de ter autonomia sobre o próprio destino.
Embora o romance esteja situado num período conturbado da história brasileira, você optou por não mergulhar na questão econômica e na crise política dos anos 1980 e 1990. Por quê?
De certa forma, a crise econômica e política embala todo o romance, é um plano de fundo. A pobreza e a fome que assolam a família de Damiana, por exemplo, é um dos combustíveis para que ela se torne uma barriga de aluguel. A desigualdade social, racial e econômica do Brasil corre paralela à trama, está o tempo inteiro lá, ainda que isso não seja colocado de forma explícita. Acho que é a forma como eu gosto de trabalhar, explorando o contexto social na intimidade dos personagens.
Fala-se muito em uma literatura brasileira contemporânea fora dos grandes centros urbanos, principalmente do Sudeste. Em Como Se Fosse Um Monstro, São Paulo é comparada a um matadouro, grande e caudaloso. Como você pensa a questão geográfica nos seus livros, e em que medida ela ajuda ou atrapalha a escrita?
Cresci em Formosa, no interior de Goiás, e hoje moro em Brasília. Sempre senti que estava vivendo em um país à margem. Por muito tempo, isso foi um entrave muito grande na minha escrita. Quase todas as referências nacionais de literatura que tive foram de autores sudestinos, e eu achava que não haveria espaço para mim, que ninguém iria querer ler sobre uma paisagem diferente e, em certa medida, desconhecida. Costumo brincar que o Centro-Oeste é a região mais esquecida na produção literária, porque não lembram nem para dizer que não somos lembrados. A partir do momento em que decidi abraçar o cerrado e escrever sobre ele, sinto que encontrei meu lugar, e acho que o que eu tenho para contar é único por causa disso. É uma decisão consciente e política.
Seus livros operam numa chave policialesca, tomando emprestados elementos do gênero. Como você pensa o suspense e o mistério na hora de montar um livro?
Que bom que você fez essa pergunta. A minha formação como leitora foi por meio dos romances policiais, lia muito Conan Doyle, Agatha Christie, Garcia-Roza e Fred Vargas. Embora não me considere uma autora policial, carrego essa influência do suspense. Acho que os thrillers me ensinaram muito sobre como construir uma trama, sobre alcançar fluidez e um bom ritmo, e sempre tento trazer esses elementos nos meus livros de alguma forma, combinados a um trabalho de estética e linguagem, ainda que essa fluidez pareça “simples” à primeira vista. Acho que no Brasil ainda existe muito preconceito contra a literatura de gênero, como o policial e a ficção científica, o que é uma besteira. A boa literatura está em todos os lugares e, se você parar para pensar, muitos autores e autoras “consagrados” trazem elementos de gênero em seus trabalhos.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.