• Entre a sinceridade e o sincericídio

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  • 05/out 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Vou ser franco: este assunto caiu na minha pauta sem eu pedir. O problema começou com aquela arriscada brincadeira em que se diz: “eu perco o amigo, mas não perco a piada”. Mas o caldo engrossou. A situação ficou séria, pois os oponentes começaram a afiar suas verdades no francamente. Aí veio outra frase bastante conhecida: “doa em que doer”. E a dor bateu em ambos e a amizade foi para o brejo…

    É preciso ter cuidado com as palavras, principalmente em ambientes públicos. É sempre bom botar a barba de molho, quando a do vizinho estiver ardendo. As palavras afiadas inconsequentemente podem criar situações embaraçosas.

    Não deram tempo para o pessoal do “deixa disso” tentar apagar o incêndio. Os oponentes eram curtos e grossos, rápidos e rasteiros. Não mediam as palavras. Perderam a linha. Estavam sóbrios, imagine se estivessem alcoolizados! Acho que iriam às vias de fato…

    “Escrever o que não acontece é tarefa da poesia”, já afirmara o mestre Manoel de Barros. Como a nossa prosa segue pela via da crônica, posso lhe contar esse episódio que vi, mas não em camarote.

    As intervenções na discussão nem sempre era possível. Percebi que já havia algumas mágoas acumuladas e, naquele momento, por meio de uma centelha política, deflagrou-se o bate-boca. Não houve tempo para lavar a roupa suja, só colocaram os podres para fora.

    Quando os ânimos estavam extremamente alterados, um colega colocou a mão no ombro de um deles e levou-o para outro lado. A minha interferência foi mínima, pois não concordava com o posicionamento de ambos. Em síntese, a discussão era entre correligionários. Eu só ficava no “não é bem assim”. Não dava para fazer uma análise aprofundada do caso, já estavam de cabeça quente.

    Tenho plena consciência de que a verdade precisa ser exposta. Contudo, mesmo estando do lado da razão, a sinceridade precisa ser mantida com as devidas cautelas, uma vez que é preciso respeitar as emoções dos outros, não criando situações constrangedoras.

    O problema não está no que se diz, mas como se diz. A verdade dita com ternura, no momento adequado, fortalece a amizade. Entretanto, dita precipitadamente de forma inconsequente pode abrir uma ferida difícil de cicatrizar.

    O sinceridício consiste exatamente nessa ofensa com a verdade. Há pessoas que a usam para ofender, pois não se preocupam com o impacto emocional que podem causar, demonstrando nenhuma empatia. A sinceridade sem filtro, com facilidade, transforma-se em grosseria.

    É preciso ter tato com as palavras. Recorro aqui a um versículo que se encontra no Evangelho de São Mateus: “Se um irmão pecar contra você, fale com ele em particular e chame-lhe a atenção para o erro. Se ele o ouvir, você terá recuperado seu irmão.” (Mt18,15)

    Não se pode perder a oportunidade de praticar a sensatez. Vale lamber uma rapadura para esperar o momento de passar a limpo um problema mal resolvido. Exercitar o silêncio é uma tarefa árdua. Manter a boca fechada não é engolir sapo. A tolerância é imprescindível na resiliência. Os sincericidas não têm muita intimidade com a humildade, porque esta fica do outro lado da arrogância. A imposição truculenta do que se pensa sempre provoca conflito.

    Repito: a verdade precisa ser dita. A sinceridade precisa ser mantida. A autenticidade é imprescindível. Não há espaço para mentira, nem para falsidades, nem para as omissões. A verdade deve prevalecer sempre na dimensão plena da justiça. Mas ela não pode ser usada como ferramenta da agressão. Usar da sinceridade para ofender é covardia.

    “Pra que mentir/ Tanto assim?/ Se tu sabes que eu sei/ Que tu não gostas de mim?!/ Se tu sabes/  Que eu te quero/ Apesar de ser traído/ Pelo teu ódio sincero/ Ou por teu amor fingido?!!” Sempre relembro esses versos da canção “Pra que mentir?”, composta em 1937, por Noel Rosa. É mais fácil lidar com o “ódio sincero” do que com o “amor fingido”, porque o amor só é amor quando não fingido. Por ser grotesco, o ódio é mais difícil de ser dissimulado.

    Dialogando com Noel Rosa, Caetano Veloso compôs “Dom de Iludir”, que se encontra no álbum “Totalmente Demais”, lançado em 1986. Nessa canção, há os seguintes versos: “Você diz a verdade/ A verdade é o seu dom de iludir/ Como pode querer/ Que a mulher vá viver sem mentir.”

    A verdade, em si, é desiludida, ou seja, não tem ilusão. A realidade nua e crua está exposta no nosso dia a dia. Para mim, a verdadeira sinceridade está na espontaneidade das crianças. Falam a verdade sem dissimulação e sempre procuram o carinho, a ternura. A sinceridade delas sempre vem em momentos lúdicos.

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