• Enceradeiras e pantufas

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  • 27/08/2019 12:00

    Sou do tempo das enceradeiras. Lembro-me do objeto antigo e redondo de metal cinza que havia lá em casa. Loucura! De repente, lembrei-me de quantos “lá em casa” já existiram em minha vida… mas voltemos à enceradeira. Recordo-me, se respirar fundo, até do cheiro da cera em pasta que era distribuída no chão por um pano nos tacos da minha infância, antes que meu pai chamasse uns homens que encaparam tudo com algo de cheio muito forte, o sinteco. Aí a enceradeira foi aposentada, junto com a brincadeira de subir em cima dela, segurando na haste, enquanto gargalhava alto, sendo empurrada na mesma pela casa por minha mãe. Hoje ela seria chamada de irresponsável por isso e eu de idiota, por achar a maior graça nessa brincadeira. 

    Nem todo mundo tinha enceradeira! Quem não tinha, lustrava o chão com tecidos macios e aveludados. Quanto maior o esforço, mais brilhava. Aí chegaram as ceras líquidas de brilho automático ou os pisos frios e laminados para retirar o objeto da história. 

    Por minha vida toda, na minha cabeça pensativa, sempre achei que as pantufas do Museu Imperial substituiam com maestria as enceradeiras. Eu pensava: Esse pessoal do Museu Imperial faz os visitantes trabalharem de graça, mas ninguém reclama porque é muito divertido.

    Quantas vezes entrei no Museu na minha juventude, depois para levar meu filho ou algum amigo turista só para andar de pantufas! Quantas vezes eu circulei os pés várias vezes na mesma direção como fazíamos com a enceradeira para lustrar a História! Quanto eu sempre achei divertido aqueles chinelões gigantes que encobriam nossos sapatos e davam um tom gorilesco ao nosso modo de andar!

    Tem alguns anos que não entro no interior do Museu. Os jardins visito sempre que posso! Espero que as pantufas ainda estejam lá, já que as pessoas não terão mais oportunidade de conhecer enceradeiras.

    Hoje meus pisos são bem bonitos, divididos entre laminados e frios e as visitas pisam neles sem culpa. Legal mesmo era quando insistiam para tirar os sapatos diante do chão sagrado de espelho da minha mãe. Aliás, todo chão de casa deveria ser tratado como espaço sagrado. Todo chão de casa acomoda a história de quem vive nela, exatamente como acontece no Museu Imperial. 

    Refletindo com meus botões (expressão do tempo das enceradeiras), há muito a ser pisado com o carinho das pantufas em nossas vidas para preservar e não permitir danos: nossos sonhos, nossos sentimentos, nossos medos, nossas expectativas, nosso tempo. 

    Distribuamos pantufas imaginárias para quem quer o ingresso. Não quer usar pantufas, não entra. Não respeita o chão sagrado de nossas vidas, não entra. 

    Pensando bem, saibamos fazer respeitar nossas convenções internas. Como faz o Museu Imperial com as pantufas, como fazia minha mãe ao permitir pisar em seu chão com sapatos ou não. Afinal, cada um é dono das regras de sua própria história.

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