Em show comemorativo, Maria Bethânia acerta os anseios do público
Quando o diretor Marcio Debellian sugeriu que Maria Bethânia fizesse um show com pista e ingressos mais acessíveis, ele sabia que a cantora, a qual ele retratou no documentário Fevereiros, lançado em 2019, tinha muito a dizer a um público mais heterogêneo, e sobretudo mais jovem, que geralmente não frequenta suas apresentações.
Adiado por conta da pandemia, o show comemorativo do documentário ocorreu na noite de sábado, 16 de abril, em São Paulo – depois de ser apresentado no Rio de Janeiro, uma semana antes.
De fato, o público de Bethânia parecia renovado – a localização da casa de espetáculo, o Espaço das Américas, próxima à região central da cidade, também colaborou. Um dos termômetros disso, além do vai e vem na pista em direção ao bar, algo típico de shows com pista, foi a ovação ao nome da percussionista Lan Lan, novata na banda de Bethânia, logo que foi anunciada pelo locutor, antes do início do show.
Personalidades como os atores Bruna Lombardi e Carlos Alberto Riccelli, as cantoras Vanessa da Mata e Liniker, o maestro João Carlos Martins, o filósofo Leandro Karnal e o vereador Eduardo Suplicy também estavam na plateia.
Com roteiro e direção da própria Bethânia, o espetáculo começou com a canção Um Índio, composta por Caetano Veloso em 1976, na qual ele idealiza um indígena como o salvador que muitos esperam. Na sequência, a cantora dá voz a Pantanal, tema de abertura da novela recém-estreada na TV Globo.
É nesse primeiro ato que Bethânia, que tem se declarado preocupada com os rumos do país, dá seu recado em forma de canção – aliás, como fez em live realizada no ano passado. Velhas questões que voltaram a assombrar o país são destacadas em canções como Rosa dos Ventos e Marcha da Quarta-Feira de Cinzas.
Bethânia também busca saídas, a seu jeito. O samba Yayá Massemba, com referência ao tráfico negreiro e com expressões de matriz africana, foi cantado e ovacionado pelo público. A cantora também fala de felicidade e busca suas raízes em De Onde eu Vim, Paulo Dáfilin, música que gravou em seu mais recente álbum, Noturno.
A surpresa no roteiro é Galos, Noites e Quintais, de Belchior, compositor que Bethânia jamais havia cantado. A música fala de um “tempo negro” e tem refrão que diz “Não sou feliz, mas não sou mudo/ Hoje eu canto muito mais”. A plateia, mais uma vez, entendeu o recado.
Na passagem do primeiro para o segundo ato, quando Bethânia deixa o palco por poucos minutos, a banda tocou Maria Vai com as Outras, composição de Toquinho e Vinicius de Moraes, com versos que falam de uma moça que reza muito, mas também é de pecar. O refrão, inspirado no candomblé, foi entoado pelo público.
Nesse momento, ouviu-se um ruidoso coro de “Fora Bolsonaro”. Ao voltar para o palco, a cantora disse que gosta quando o público se manifesta. Aliás, Bethânia teve a plateia em suas mãos durante todo o espetáculo. Ao ser interrompida uma única vez ao começar a recitar pequenos versos que selecionou para declamar ao longo do espetáculo, disse, de forma delicada: “posso falar?”. Foi atendida na hora.
O segundo ato é mais dedicado às canções de amor. Nele, estão os sambas-canção Bar da Noite, Negue e Lama. Antes de cantá-los, Bethânia exalta a força da mulher, vista, por vezes, demasiadamente submissa nesse gênero, no samba Mulheres do Brasil, de Joyce, que ela gravou em 1988.
Em tempos que carnaval é qualquer coisa, Bethânia fez, no primeiro bis, o público cantar antigas marchinhas, como Ala-la-ô e A Água Lava Tudo (só não lava a língua dessa gente, como diz a letra) e os frevos A filha de Chiquita Bacana e Chuva, Suor e Cerveja, ambos de Caetano.
Ao retornar ao palco mais uma vez, a cantora fez sua tradicional despedida com O que é o que é, de Gonzaguinha. Por ora, a assessoria da cantora afirma que Bethânia não tem a intenção de transformar essa apresentação de comemoração ao lançamento do DVD Fevereiros em uma turnê.
O que Maria Bethânia não deve perder é a conexão que criou com o público jovem, sem descaracterizar ou fazer concessões em sua música. Um próximo tira-teima disso ocorrerá em setembro, quando a cantora participará do Coala Festival, com um line-up que inclui nomes da nova geração como Marina Sena, Black Alien e Juliana Linhares.
Ao contrário de Gal Costa, que se apresentará ao lado dos cantores Rubel e Tim Bernardes, Bethânia vai encarar o público sozinha – e, novamente, deve colocá-lo para cantar Negue.