• Em meio ao ódio crescente, Céline Dion insiste em pôr sua voz a serviço do amor

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  • 23/06/2022 08:20
    Por Luiz Carlos Merten, especial para o Estadão / Estadão

    De tão inacreditável, a história só poderia ser verdadeira, e é. Valérie Lemercier participava das entrevistas de lançamento de seu longa 50 São os Novos 30 em uma emissora de rádio. O apresentador perguntou-lhe o que ela, atriz e realizadora, faria a seguir. Num impulso, veio um nome e ela respondeu: “Vou contar a história de Céline Dion”.

    Com o tempo, Valérie descobriu o que a levou ao anúncio intempestivo. Havia ficado impressionada com a imagem devastada da artista canadense no enterro do marido, também produtor. Naquela mesma noite, recebeu um telefonema do seu diretor de arte dizendo que estava no projeto, e que já tinha muitas ideias. Foi assim que tudo começou. Apresentado no Festival de Cannes de 2021, Aline, com o acréscimo de A Voz do Amor ao título, já está em cartaz nos cinemas brasileiros.

    Viva o cinema francês! Numa entrevista por Zoom, de Paris, Valérie conta. “O filme ganhou nove indicações para o César (o Oscar francês). Fomos perdendo todas. Quando ganhei como melhor atriz, a alegria da vitória somou-se ao desapontamento pelas perdas dos integrantes da minha equipe. Sem eles, eu não teria conseguido. Fiz um discurso que foi considerado emocionante, mas eu estava realmente emocionada.”

    Não uma, nem duas – três. Valérie ganhou duas vezes o César de melhor coadjuvante, por Os Visitantes e Um Lugar na Plateia, em 1994 e 2007 respectivamente, mais o prêmio de melhor atriz, por Aline, em fevereiro passado. “Foi um filme que exigiu muito trabalho, muita preparação.

    Primeiramente, precisei recolher muita documentação. Li tudo sobre Céline, assisti às gravações de seus shows, emulei seus gestos. Filmamos em Quebec, em Los Angeles e em Málaga, na Espanha, as cenas da mansão.”

    Nos créditos finais, ela agradece à comunidade quebequense. “Eles têm muito orgulho dela. Colaboraram de todas as formas.”

    Aline chegou aos cinemas da França com o relaxamento das medidas sanitárias. Fez 1,4 milhão de espectadores. “É menos da metade do que já fiz com outros filmes, mas, no quadro atual, o sucesso foi excepcional. No Brasil deve estar ocorrendo a mesma coisa. Muita gente ainda hesita em voltar às salas. Aline foi feito – o som, a imagem, os efeitos – para ser visto no cinema.

    Meu diretor de fotografia fez um trabalho maravilhoso.” O repórter assina embaixo. A maneira de filmar os shows, a mansão. O que não falta a Aline é glamour. Mas o filme não deixa de ter seus problemas. De cara, produz estranhamento. Aline/Céline vem de uma família de artistas, a 14ª filha de uma família numerosa. Cinco minutos de filme, papai, mamãe e os irmãos apresentam-se no palco quando aparece a menininha a olhá-los.

    A cena é premonitória da persona artística de Aline/Céline. Mas tem um problema. O rosto é o de Valérie. Nas cenas seguintes a acompanhamos, cronologicamente, aos 12, aos 18, aos 20 anos. É sempre a cara de Valérie. Como? Em O Irlandês, Martin Scorsese já utilizou tecnologia de ponta para rejuvenescer seu elenco – Robert De Niro, Joe Pesci.

    CHOQUE

    Em Aline, parece que há um choque entre o rosto e o corpo da personagem. “Entendo o que você está chamando de estranhamento, mas meu rosto não foi simplesmente impresso num corpo de garota, de adolescente. Sou eu de corpo inteiro, meus gestos emulando os de Céline. Não conseguiria interpretá-la sem meu corpo, minhas mãos. Isso tudo foi muito planejado, e difícil de executar. Nossos técnicos fizeram um trabalho que considero brilhante.”

    Há controvérsia. No site RogerEbert.com, a crítica é demolidora, por conta desse detalhe nada negligenciável. Veja você mesmo. Na trama, a família de Aline leva uma demo a um famoso produtor. Ao ver a garota franzina, ele duvida que possa ser a voz da fita cassete. Ela canta a capela. O homem mais velho será uma referência, uma bússola. Contra, principalmente, a vontade da mãe, que sonha com um príncipe para a sua princesinha, Aline apaixona-se. Canta para o homem amado. “Ele foi o Pigmalião de Céline, o amor da vida dela.” O ator canadense, de Quebec, Sylvain Marcel é quem faz o papel. “A primeira vez que vi Sylvain foi numa foto. Quando o encontrei, fiquei impressionada com seu jeito calmo, protetor. Era o que precisava para o personagem.”

    Quando se casam, a felicidade não é completa porque querem ter filhos, mas o casal não engravida. É preciso tratamento. No processo – e não vai nenhum spoiler nisso -, Aline perde o pai, a mãe, o marido. “Dentro do sucesso, é um filme sobre tudo o que ela perdeu, sobre a sua solidão”, avalia Valérie.

    “Por isso começo o filme com ela na cama e as crianças. Você falou em glamour na imagem. Brilho, colorido. Quando a imagem do início volta no filme, o preto do luto torna-se dominante.” O cuidado faz com que a diretora não utilize a voz da própria Céline cantando. “Por uma questão de timbre, para ajustar canto e diálogo, utilizo a voz de Victoria Sio. Ela tem todas as oitavas de Céline, canta muito bem, a passagem é mais harmônica.”

    E Valérie conta que acompanhou a gravação colada em Victoria. “Fiquei com ela o tempo todo no estúdio, dizendo para quem Aline estaria cantando cada música no filme. Respirava com ela, acho que a sincronização terminou sendo mais difícil para Victoria.”

    Ajudou muito no estouro internacional de Céline Dion o fato de ela ter cantado o tema romântico de Titanic, o blockbuster de James Cameron. “É claro que não poderia faltar no filme, mas optamos pela discrição. Não queria que o filme passasse a ideia de que Céline só se tornou quem é por causa de Titanic.” Foi difícil conseguir a autorização dela para fazer filme? “Enviei o roteiro para sua agente, que leu e gostou. Céline nem leu para dar sua aprovação. Confiou nela (a agente).”

    PERDAS E GANHOS

    Valérie acrescenta uma coisa muito importante. “Em todo o mundo, há um movimento de ódio muito forte. No Brasil, nos EUA, na França também. Tivemos uma presidentielle – eleição – marcada por um discurso raivoso da direita. Céline não tem feito outra coisa senão cantar o amor. E foi uma inspiração. O mundo é muito melhor com afeto, você não acha?”

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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