• Em 12 anos, Bibi minou lentamente as instituições

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  • 25/07/2021 16:33
    Por Renato Vasconcelos / Estadão

    Em 13 de junho, chegou ao fim o período de 12 anos consecutivos de Binyamin Netanyahu como primeiro-ministro de Israel. Ao todo, Bibi chefiou o Executivo por 15 anos (1996-1999 e 2009-2021), mas foi na “parte dois” que o premiê aderiu à onda populista que começava a ganhar espaço no cenário internacional. Levantou a bandeira do nacionalismo, enfraqueceu opositores e articulou acordos políticos que minaram a democracia israelense por dentro, especialmente a proteção de grupos minoritários – herança que segue a ameaçar o país após sua saída.

    O caso de Israel é diferente de países como Turquia e Filipinas, onde houve comprometimento de toda a estrutura democrática em benefício de seus líderes e a perseguição a opositores resultou em cadeia ou morte. O processo foi mais sutil, marcado por um jogo retórico agressivo e pela aprovação de leis, via Parlamento, que restringiram direitos fundamentais e enfraqueceram mecanismos de freios e contrapesos. E, para isso, um fator foi fundamental: o tempo.

    O avanço iliberal não ocorreu de uma só vez. Ao longo dos 12 anos, diversos projetos do governo foram barrados, “reembalados” e propostos novamente, por vezes em textos ainda mais severos, a fim de forçar que o esforço da oposição para chegar a um “meio-termo” não derrubasse pontos considerados chave. “Quando você tem um líder no poder por muito tempo, ele consegue minar a democracia vagarosamente. Em sistemas parlamentaristas, que não impõem um limite de mandatos, isso é um risco ainda maior”, explicou o professor Henri Barkey, da Universidade Lehigh, na Pensilvânia.

    Netanyahu passou a ser chamado de “o grande sobrevivente”, por causa da sua capacidade de criar alianças e manobrar para desviar de encrencas com o Judiciário. O ex-primeiro-ministro estava sob investigação por aceitar presentes luxuosos de empresários como suborno e oferecer favores para tentar obter uma cobertura mais positiva da imprensa. Para muitos israelenses, o longo processo contra Netanyahu na Justiça está vinculado a um período de impasse político – que resultou em quatro eleições gerais inconclusivas em dois anos.

    Desde que as denúncias começaram a surgir, em 2018, Netanyahu manobrou para tentar fugir da Justiça israelense. A última tentativa foi aprovar uma lei de imunidade que lhe ajudaria a fugir de quatro processos por corrupção (implicando o ex-premiê em fraude, suborno e quebra de confiança).

    O processo iliberal se acentuou com a segunda ascensão de Netanyahu ao poder, em 2009. Ali começaram a ser aprovadas leis que atacavam pilares democráticos, como a lei de comitês de admissão, que permite a comunidades assentadas em terras comunitárias rejeitar a participação de quem não se “encaixe no seu grupo social”. Também é do período a lei da Naqba, que proíbe qualquer ato público que relacione a fundação do Estado de Israel ao êxodo palestino da região, em maio de 1948, um ataque à liberdade de expressão.

    Um dos projetos mais polêmicos, a lei do Estado-nação, teve suas primeiras versões propostas no começo do governo Netanyahu, mas só foi aprovada em 2018. O texto define Israel como o Estado-nação do povo judeu e afirma que “cumprir o direito à autodeterminação nacional no Estado de Israel é exclusivo do povo judeu”, além de rebaixar o árabe de língua oficial para “língua com status especial”. Contestada judicialmente, a lei foi confirmada pela Suprema Corte em 8 de julho deste ano, com votação de 10 a 1 entre os ministros.

    “A Suprema Corte esperou três anos antes de tomar medidas sobre esta questão. Isso mostra como os juízes ficaram constrangidos. Eles decidiram alegando que esta lei fundamental estava de acordo com a ‘identidade democrática do Estado’, apontando que não se refere ao princípio da igualdade. Parece óbvio, neste caso específico, como em muitos outros, que o Tribunal pretendia evitar a abertura de um conflito com os outros dois poderes”, disse Samy Cohen, professor emérito da Sciences Po de Paris e autor do livro Israel, uma Democracia Frágil.

    Além da pressão ao Judiciário, Netanyahu promoveu o aparelhamento da Suprema Corte, segundo Cohen. “A ministra da Justiça Ayelet Shaked nomeou juízes conservadores para a Suprema Corte, um ato que Trump não rejeitaria”, afirmou.

    O avanço da onda nacionalista liderada por Netanyahu foi facilitado pela penetração que temas de segurança do Estado e preservação da identidade judaica têm em boa parte da população israelense, marcada pelo medo do terrorismo e pela proximidade de inimigos históricos. Enquanto o governo vendia cada novo projeto como uma proteção a mais para a maioria judaica, as minorias foram atingidas e figuras de oposição, taxadas de traidoras.

    O ambiente de polarização se traduziu nas urnas. Após os mandatos subsequentes de Netanyahu, o principal rival histórico do Likud, o Partido Trabalhista, praticamente se dissolveu em influência no Parlamento. Com eleições livres e funcionais, as opções ficaram restritas aos pró-Bibi e ao “outro lado”. Mesmo estimulando o discurso de polarização, Netanyahu nunca conquistou a maioria absoluta, mas conseguiu formar coalizões que viabilizaram sua manutenção do poder. Um dos aliados encontrados por Netanyahu foi a extrema direita religiosa.

    “A centro-esquerda sempre marginalizou os grupos ultra religiosos, enquanto Netanyahu criou uma aliança. Eles votam em bloco, têm apoio de parte da população e suas posições não mudam por questões econômicas. Isso lhe deu uma enorme vantagem”, explica Barkey.

    A capacidade de firmar acordos que permitissem sua permanência no poder lhe rendeu o apelido de “mago”. De partidos sionistas a partidos com representação árabe-palestina, o premiê manteve aberto diálogo com todos que se dispusessem a compor seu governo. Mas as pontes construídas por Netanyahu nem sempre se mostraram firmes.

    Muitos de seus acordos nunca se concretizaram, e aliados que se uniram ao governo com a promessa de receber apoio nas eleições seguintes foram abandonados no meio do caminho. Dois de seus principais rivais atuais, Naftali Bennett e Yair Lapid, foram ministros em gestões passadas, mas passaram para a oposição por não terem sua vez como protagonistas.

    Um caso que ilustra a capacidade de sobrevivência de Netanyahu é o acordo com o ex-general Benny Gantz, líder do partido Azul e Branco, até então principal figura da oposição em Israel. Pressionado por denúncias de corrupção e abuso de poder, Netanyahu disputou voto a voto com Gantz em três das quatro eleições realizadas no país nos últimos dois anos.

    Após a terceira disputa – e de um longo período de troca de acusações – o primeiro-ministro conseguiu um acordo impensável em março do ano passado, quando convenceu o general a aderir ao seu governo. O acordo: a coalizão ficaria no poder por três anos, Bibi seria o líder na primeira metade, e Gantz na outra. A coalizão não durou muito tempo e novas eleições foram convocadas, mas o general perdeu capital político.

    O fim da era Netanyahu não representa o fim do populismo em Israel. O atual premiê, Naftali Bennett, pertence a uma ala mais conservadora, e só chegou ao poder por meio de uma coalizão que reúne as mais distintas vertentes da política israelense, cujo único ponto de convergência é a oposição a Bibi.

    Se a coalizão vai prosperar, governar e frear o avanço antidemocrático no país, ou se vai se provar apenas uma reunião de ex-aliados com desejo de vingança, é cedo para afirmar. Mas a herança de aparelhamento do Estado e de restrição de direitos não será facilmente revertida, muito menos com a presença de Netanyahu fora do governo, mas ainda no Knesset (Parlamento), posição que não conhecia havia mais de uma década.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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