Eleitor negro prefere quem defende cotas ao que promete melhoria no bairro
Eleitores negros preferem votar em um candidato que defenda as cotas raciais nas universidades a escolher um concorrente que se apresenta com promessas de melhoria no bairro. A constatação está registrada na primeira pesquisa qualitativa nacional “Raça e Voto”, conduzida Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP), ligado ao Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Pretos e pardos representam 56% da sociedade e mais da metade dos eleitores aptos a votar em outubro. Trata-se de um público que confere densidade política em qualquer processo eleitoral. Grupos de entrevistados submetidos a um “teste de votação” priorizaram ampliar o acesso da população negra ao ensino superior, com o argumento de que a política de cotas aumenta as oportunidades.
O mesmo teste revelou ainda que, entre um candidato defensor das cotas raciais e outro com discurso voltado à segurança pública, o eleitor negro tende a preferir o primeiro, mas por margem apertada. O resultado indica que o tema da proteção dos cidadãos também é caro à população preta e parda, que aparece recorrentemente em destaque nos indicadores de violência como as maiores vítimas.
Embora o Brasil tenha reduzido a taxa de homicídios no ano passado, os negros ainda figuram como principais alvos da violência no País. Pardos e pretos representam 77% dos cerca de 47 mil assassinados em 2021, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Apesar de não serem os que mais morrem, eleitores brancos demonstram mais preocupação com a política de segurança do que os votantes de grupos racializados.
Para a jovem ativista Thuane Nascimento, a preferência do eleitorado negro pela política de cotas, mesmo que em detrimento da pauta de segurança pública, revela a importância do movimento pró-cotas. “Nós consideramos (as cotas) como uma das poucas políticas públicas definitivamente acertadas e duradouras, e a gente ainda quer muitas outras. Agora que elas foram conquistadas, a luta é pela manutenção”, afirmou. A lei que criou as cotas previa sua validade por dez anos. Neste ano, elas terão de ser reavaliadas.
Aluna cotista do curso de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Nascimento é diretora do Perifaconnection, organização de jovens lideranças periféricas que, neste ano, organiza uma campanha nacional de celebração dos dez anos da implementação da política de cotas no País. A iniciativa tem atuado em universidades públicas do País e buscado negociar com candidatos o apoio à lei nos planos de governo e nas propostas legislativas.
A pesquisa Raça e Voto também indica que eleitores brancos ouvidos chegam a defender as cotas raciais na mesma proporção do que os negros, mas, em muitos casos, demonstraram preferência pelas ações afirmativas de cunho social. A única parcela que apresentou maior restrição foi a dos evangélicos, que se mostrou mais alinhada ao discurso de “meritocracia” na área educacional. Houve ainda aparente consenso entre os diferentes grupos ouvidos de que é preciso introduzir desde cedo nas escolas o ensino da história e da cultura dos países africanos.
Economia
Embora não tenha sido o foco da pesquisa, a situação econômica do País despontou como o principal motivo de preocupação dos eleitores negros. A taxa de desemprego de 9,18%, a inflação acumulada de 11,73% no último ano e os mais de 33 milhões de brasileiros que passam fome no País – segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Rede Pessan – estão entre os principais problemas vivenciados por essa parcela do eleitorado no País.
A pesquisa Raça e Voto ouviu mais de 360 pessoas autodenominadas pretas, pardas, brancas e evangélicas em Brasília, Rio de Janeiro, Curitiba, Cuiabá, Salvador, Belém, São Paulo e Fortaleza. Os entrevistados foram distribuídos em 40 grupos que responderam a questões sobre o consumo de informação política, os políticos que mais admiram, o processo de definição do voto, as cotas raciais, o ensino de história e cultura afro-brasileiras nas escolas, e as relações entre raça e representação política e entre religião e voto.
O cientista político João Feres, doutor pela Universidade da Cidade de Nova York e coordenador da pesquisa, diz que o estudo tentou mapear como as questões raciais podem afetar a escolha do voto. O baixo número de negros eleitos foi um dos temas pesquisados. “Em relação à sub-representação de negros, as pessoas não se atentam muito a isso. Quando chamamos a atenção (para o assunto), elas notam que é um problema. Muitas pessoas apontam o preconceito do eleitorado em relação aos candidatos negros como um motivo da sub-representação”, afirmou.
Dados do Observatório da Equidade no Legislativo mostram que a atual legislatura da Câmara tem 125 deputados autodeclarados negros, o equivalente a 24,3% dos integrantes da Casa, ante 75% de parlamentares brancos. A maioria dos entrevistados pela pesquisa Raça e Voto atribui a baixa representatividade desses grupos na política à distribuição desigual de recursos e ao racismo.
Em 2020, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu que divisão do fundo eleitoral e do tempo de propaganda gratuita em rádio e TV deve ser proporcional ao total de candidatos negros que o partido lançou na disputa. Na ocasião, as legendas se queixaram das dificuldades para implementar a regra a tempo das eleições daquele ano, o que fez com que a decisão só passasse a valer neste ano. Para as pessoas negras ouvidas no estudo, o aumento da representação de pretos e pardos na política contribuiria para melhorar as condições de vidas dos negros.
Desigualdade histórica
A educadora Mônica Ferreira, que coordena o grupo de trabalho de candidaturas da Coalizão Negra por Direitos, disse que a sub-representação dos pardos e pretos está relacionada a fatores mais profundos do que os apontados pela pesquisa, como a desigualdade histórica de acesso à formação política. “Sempre se destaca o aspecto financeiro, mas é preciso fazer uma análise mais ampla. A falta de acesso a recursos é importante, mas o filtro que dificulta a presença negra nos espaços de tomada de decisão é muito anterior a isso”, afirmou.
Segundo ela, a maior parte das pessoas negras não tem um histórico familiar na política, o que dificulta a ascensão na carreira. “Uma outra dimensão envolve aspectos mais subjetivos influenciados pelo racismo: a falta de impulso, confiança e estímulo a se lançar na vida pública”, afirmou.
Um dado revelado pela pesquisa mostra que a maior parte do eleitorado negro aponta o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a ex-vereadora Marielle Franco como os políticos que mais admiram. Esse sentimento de admiração em relação ao petista também está presente entre os evangélicos e eleitores brancos.
O levantamento demonstra existirem dois tipos de admiradores de Lula: os incondicionais e os comedidos. As principais declarações de apreço se basearam no fato dele ter feito “muitas coisas boas pelos pobres”. Há também os que relataram apoiar o petista por o considerarem o único capaz de vencer o atual presidente Jair Bolsonaro (PL) em outubro.