• É possível a felicidade num mundo conturbado como o nosso?

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  • 25/ago 08:00
    Por Leonardo Boff

    A felicidade é um dos bens mais ansiados pelo ser humano. Mas não pode ser comprada nem no mercado, nem na bolsa, nem nos bancos. Apesar disso, ao redor dela se criou toda uma indústria que vem sob o nome de auto-ajuda. Com cacos de ciência e de psicologia se procura oferecer uma fórmula infalível para alcançar “a vida que você sempre sonhou”.

    Confrontada, entretanto, com o curso irrefragável das coisas, ela se mostra insustentável e falaciosa. Curiosamente, a maioria dos que buscam a felicidade intui que não pode encontrá-la na ciência pura ou em algum centro tecnológico. Vai a um pai ou mãe de santo ou a um centro espírita ou freqüenta um grupo carismático, consulta um guru ou lê o horóscopo ou estuda o I-Ching da felicidade. Tem consciência de que a produção da felicidade não está na razão analítica e calculatória, mas na razão sensível e na inteligência emocional e cordial. Isso porque a felicidade deve vir de dentro, do coração e da sensibilidade.  

    Para dizer logo, sem outras mediações, não se pode ir direto à felicidade. Quem o faz, é quase sempre infeliz. Bem dizia um poeta popular: “Entre o sonho e a realidade é bem diverso o patis/ Quem sonha felicidade é quase sempre infeliz”. A felicidade resulta de algo anterior: da essência do ser humano e de um sentido de justa medida em tudo.

    A essência do ser humano reside na capacidade de relações. Ele é um rizoma de relações, cujas raízes apontam para todas as direções. Só se realiza quando ativa continuamente sua panrelacionalidade, com o universo, com a natureza, com a sociedade, com as pessoas, com o seu próprio coração e com Deus.

    Essa relação com o diferente lhe permite a troca, o enriquecimento e a transformação. Deste jogo de relações, nasce a felicidade ou a infelicidade na proporção da qualidade destes relacionamentos. Fora da relação não há felicidade possível.

    Mas isso não basta. Importa viver um sentido profundo de justa medida no quadro da concreta condição humana. Esta é feita de realizações e de frustrações, de violência e de carinho, de monotonia do cotidiano e de emergências surpreeendentes, de saúde, de doença e, por fim, de morte.

    Ser feliz é encontrar a justa medida em relação a estas polarizações (cf. Meu livro A Busca da justa medida, Vozes (2023). Dai nasce um equilíbrio criativo: sem ser pessimista demais porque vê as sombras, nem otimista demais porque percebe as luzes. Ser concretamente realista, assumindo criativamente a incompletude da vida humana, tentando, dia a dia, escrever direito por linhas tortas. Alguns acentuam mais o pessimismo como Ariano Suassuna e se identifica como um pessimista esperanço. Antonio Gramsci, grande teórico do marxismo humanista dizia: “sou pessimista na inteligência, mas otimista na vontade”.

    A felicidade depende desta ars combinatoria especialmente quando nos  confrontamos com os limites incontornáveis, como, por exemplo, as frustrações avassaladoras e a morte inevital. A iracindia sagrada face ao genocídio perpetrado por Israel na Faixa de Gaza. A onda de ódio que graça pelo mundo, o feminicídio diário e morte de LGBTQ+ diuturnamente.

    Mas não basta se revoltar contra estas tragédias, ser revoltado ou simplesmente se resignar porque não podemos mudá-la.

    Mas tudo muda se formos criativos: fazer dos limites fontes de energia e de crescimento. É o que chamamos de resiliência: a arte de tirar vantagens das dificuldades e dos fracassos. Tal situação é uma forma de buscar uma humanização mais profunda.

    Aqui tem seu lugar um sentido espiritual da vida, que é mais que a religiosidade, sem o qual a felicidade não se sustenta a médio e a longo prazo. Então aparece que a morte não é inimiga da vida, mas um salto rumo a uma outra ordem mais alta. Se nos sentimos na palma das mãos de Deus, serenamos. Morrer é mergulhar na Fonte. Desta forma, como diz Pedro Demo, um pensador que no Brasil melhor estudou a “Dialética da Felicidade” (em três volumes, pela Vozes): ”Se não dá para trazer o céu para terra, pelo menos podemos aproximar o céu da terra”. Eis a singela e possível felicidade que podemos penosamente conquistar como filhos e filhas de Adão e Eva decaídos.

    Em todos os casos, o caminho mais seguro é, alguém será tanto mais feliz quanto mais fizer outros felizes e cultivar indignação e compaixão contra as perversidades que ocorrem em nosso país e no mundo.

    **Sobre o autor: Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor.

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