Dupla afronta ao povo brasileiro
O Brasil mais parece uma estranha montanha russa com mais descidas do que subidas. Os atuais poderes constituídos competem entre si para se desconstituírem. Nem mesmo o passado escapa no que tem de melhor. Dois fatos nos chegam como filmes de terror: a decisão monocrática do ministro Fachin, que deixa Lula sorrindo de orelha a orelha, e o país revoltado; e o projeto de restauração (anômala) do Museu Nacional, o antigo Paço de São Cristóvão, que descaracteriza o prédio como retrato vivo da memória nacional.
O ministro Fachin, sem entrar no mérito, anulou as condenações do ex-presidente Lula, alegando que a justiça federal de Curitiba não tinha competência para julgá-lo. Os processos deveriam ter ido, desde o início, para a justiça federal do Distrito Federal. Trata-se, mais uma vez, da triste vitória das formalidades jurídicas sobre a realidade dos fatos. Ainda me lembro de uma matéria do jornal O Globo, vários anos atrás, em que, ao longo de 40 anos, o STF só havia condenado um único caso de um dos figurões do andar de cima. Provavelmente, este poderia ter sido o destino das acusações contra Lula caso os processos fossem ajuizados em Brasília.
Foi justamente o fato de terem ido para a 13ª Vara Federal de Curitiba, que dispunha de uma equipe de investigações qualificada e com disposição para apurar os fatos, sem ingerências políticas tão comuns em Brasília, que a coisa andou. É verdade que o ministro Fachin defende a continuação da Lava-Jato. Para ele, sua nefasta decisão preservaria a Lava-Jato, operação que Gilmar Mendes quer enterrar de vez.
Justificativa frágil, pois Gilmar Mendes levou adiante, em 9.3.2021, a sessão da 2ª Turma do STF para julgar a suspeição de Moro em relação a Lula, que ficou no 2 a 2 em função do pedido de vista do ministro Nunes Marques. Gilmar Mendes, durante a sessão, acusou Moro de ter um projeto político pessoal inadmissível no Judiciário. Moro estaria adotando na busca de provas práticas típicas de regimes totalitários. Claro, esquecendo-se conveniente- mente que este era o projeto de poder confessado pelo próprio José Dirceu.
Os 130 anos de república presidencialista geraram um clima institucional em que a confiança deixou de ser a pedra angular da vida política. Em países bem resolvidos politicamente, como foi o nosso caso nos tempos do Império, vigora normalmente o regime parlamentarista sempre assentado sobre a confiança da população ou do Parlamento no gabinete que está no poder. Este pode cair, a qualquer momento, por um simples voto de desconfiança sem exigir provas com firma reconhecida em cartório. Na tradição presidencialista, a confiança cai para segundo plano e as provas que contam precisam ter as digitais dos implicados. Num primeiro momento, pode parecer justo, mas joga para escanteio a quebra de confiança que deveria prevalecer na vida política.
Nessa linha, fatos públicos e notórios são ignorados como se fosse possível assaltar os cofres da Petrobrás em bilhões de reais sem que o comandante-mor, Lula, tivesse conhecimento. Ou o esquema do mensalão em que o único artífice teria sido o José Dirceu. Lula se diz vítima da maior mentira jurídica do país em 500 anos. Foi modesto. Ele sabe que a dita cuja é ele mesmo. Pior: em vídeo, Lula, após juras de amor eterno ao povo, no final, cometeu o seguin-te ato falho: “Eu não vou enganar o povo novamente”. O novamente diz tudo. Na verdade, o país se tornou vítima de um sistema de corrupção sistêmica sem precedentes em nossa história para financiar os delírios de poder do PT.
Essa situação que o saudoso Nelson Rodrigues chamou de óbvio ululante não atingiu os ouvidos moucos do ministro Fachin. As fortes reações populares despertadas já eram esperadas tamanha a indigNação que tomou conta das pessoas. Quer dizer, a suspeição de Moro pode ser levada em conta pela justiça com base em provas ilegais obtidas por hachers, mas as condenações, mesmo em segunda instância no TRF-4, podem ser descartadas simplesmente por não terem sido realizadas no foro federal adequado de Brasília. Dois pesos e duas medidas. Cabe ao pleno do STF interditar o bloco-do-eu-sozinho de Fachin.
A segunda afronta não é menos grave. Ela desfigura a memória nacional propondo uma reforma (retrofit) do Paço de São Cristóvão, hoje conhecido como Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, que pouco mantém do que foi o prédio original de imenso valor histórico, arquitetônico, artístico e afetivo do Povo Brasileiro. O projeto de criar ali um museu dedicado às ciências naturais é criticado por especialistas sempre atentos aos riscos tão comuns no Patropi republicano de passar por cima daquilo que deve ser preservado. Ao IPHAN, sempre alerta a tais desvios, cabe colocar todo o seu peso, como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, para evitar mais esse desvario, guardião que é de sua preservação.
Já não bastou o crime não apurado de incêndio do prédio cujo péssimo estado de conservação prenunciava há décadas uma tragédia programada. Houve ainda a recusa de recursos vultosos a fundo perdido do Banco Mundial para a reforma do prédio até hoje mal explicada. Aparentemente, a exigência normal constante dos Estatutos do banco de poder acompanhar a aplicação dos fundos disponibilizados não foi aceita pela direção superior da UFRJ, que continua intacta até hoje.
Enquanto isto, na França, berço do estado laico, o Senado Francês decidiu que a restauração da catedral de Notre Dame de Paris seja feita “segundo seu último estado visual conhecido”. Até mesmo políticos ateus franceses entenderam que não se brinca com a memória religiosa francesa de séculos. Enquanto isso, no Patropi, os poderes ditos republicanos nos mantêm numa verdadeira montanha russa emocional. A destruição do presente, do futuro e do passado é inaceitável. A falta de respeito a quem paga a conta, o Povo, está no limite. Mais cedo do que tarde, virá a salutar e saneadora reação.