
Doxing
Nestes primeiros passos, para não perder o espaço, nem o compasso da Poesia, tragos hoje os versos da canção “Andrea Doria” da Legião Urbana, lançada no álbum “Dois”, em 1986: “Quero ter alguém com quem conversar/ alguém que depois não use o que eu disse/ contra mim”. Vale ressaltar que SS Andrea Doria é o nome de um navio italiano que naufragou ao colidir com outra embarcação em 1956. Essa alusão a choque de gerações geralmente remete a alguns naufrágios…
Na época em que a citada música foi lançada, a televisão era apontada como culpada dos maus hábitos da “geração coca-cola”. Ironicamente, os Titãs, outra clássica banda desse período, cantou no programa do Chacrinha, “Televisão”: “A televisão me deixou burro/ Muito burro demais (ô, ô, ô)/ Agora todas coisas que eu penso/ Me parecem iguais (ô, ô, ô)/ O sorvete me deixou gripado/ Pelo resto da vida/ E agora, toda noite quando deito/ É boa noite, querida/ Ô Cride, fala pra mãe/ Que eu nunca li num livro/ Que o espirro fosse um vírus sem cura/ Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura.”
E aqui digo, de passagem, que o Poeta da Vila, Noel Rosa, diante das contradições da época dele, afirmara que “o cinema falado” era o grande culpado da transformação. Isso na década de 30.
Os filhos dos filhos dos filhos da geração que colocou os dedos em V, em saudação “paz e amor”, hoje depara-se com uma onda movida por uma inteligência artificial que desidrata emoções. O “capitalismo selva”, na “selva de pedra”, sente a aridez do concreto sem ternura.
Quando vejo meninas e meninos perdidos no espaço, comumente viajo no túnel do tempo e encontro a saudade “da aurora da minha vida, da infância querida que os anos não trazem mais.” Quando se descobre que a vida não é um jogo, lamenta-se o tempo perdido, principalmente quando o viver se restringe à “corrida do ouro”.
A verdade é que os egos inflados encontraram, nas redes sociais, um solo fértil para plantar o vazio da futilidade. Há os que enriquecem produzindo “conteúdos” sem nenhum compromisso com a ética. Não se trata de fake News, mas da propagação de valores que ferem o senso da moralidade.
Quero deixar claro aqui que não sou a favor da censura, mas da sensatez, do bom senso. Não sou do bloco dos conservadores, nem da ala dos moralistas. Contudo, não consigo assimilar a ideia de criar escândalos só para atrair flashes. Muitos ganham mais evidências pelas polêmicas criadas, pelas declarações que fazem do que pela arte que produzem.
Há os que usam a irreverência para suprir a falta de talento. É triste ver a mediocridade em expansão. O tempo ameniza um pouco essa tristeza, porque pulveriza os sucessos efêmeros sem a criatividade inerente ao talento. A arte, sem artifício, eterniza-se na memória do povo. Mas há aqueles que trabalham apenas para o verão, não completam primaveras, nem aquecem no inverno, nem dão frutos no outono.
Ainda adolescente, tive que tomar contar do meu nariz. Não o colocava em flor que não se deve cheirar, contudo queimei muita pestana em lamparina. Por isso, ainda vejo, como luxo, a luz elétrica…
Nos últimos anos, também se tem constatado a expansão do comércio da privacidade. Vende-se a intimidade como uma mercadoria rentável. Fazem publicidade dos relacionamentos afetivos, tornando públicas as opções sexuais, expondo fotos íntimas simplesmente para ter mais espaço na mídia.
Em muitos casos, há uma visível manifestação de carência e um desejo desesperado de ganhar notoriedade, exibindo o próprio corpo em uma sensualidade que só expõe o medo da solidão e o vazio interior. Procurar visibilidade na mídia exibindo parceiro e/ou parceira, trata-se de um apelo à mediocridade. E, por meio dessa obsessão publicitária, tentam tirar algum benefício financeiro.
E, diante da vulnerabilidade das exposições de dados pessoais, uma prática criminosa tem-se propagado, rotulada de “doxing” ou “doxxing”, neologismo inglês usado para denominar um tipo de chantagem: pessoas se apoderam de informações sigilosas e passam a usá-las para ameaçar, extorquir, torturar psicologicamente as suas vítimas. Essa prática tem sido comum entre adolescentes. Isso tem ocorrido com alto grau de perversidade.
Quem trabalha na área educacional tem se deparado com crianças e adolescentes vítimas de bullying. Já estamos colhendo os frutos de uma geração atada às redes sociais. Inquestionavelmente o ser humano precisa viver em sociedade. Mas essa socialização só ocorrerá pacificamente, quando fundamentada no respeito e no reconhecimento da dignidade humana. Vale dizer, portanto, a felicidade é um direito de todos.