Dom Pedro II e o Rei Pelé
A primeira pergunta que me fiz quando resolvi escrever este artigo foi se daria liga. Ao fazer um breve retrospecto das biografias de ambos, a resposta veio sucinta e enfática: muita! O distanciamento no tempo histórico não destrói princípios e valores consistentes e duradouros. Ontem e hoje, as figuras de grandes brasileiros podem nos inspirar e guiar na atual falta de rumo do País.
Tomemos, inicialmente, a grande figura de Pelé. Ele, sem dúvida, nos enche a todos de orgulho e de uma (quase) devoção. Nascido na pequena cidade mineira de Três Corações, numa família simples bem estruturada, desde muito cedo, ficou evidente sua vocação: o futebol. A linhagem vinha do pai, Dondinho, que conseguiu a proeza de fazer cinco gols de cabeça numa única partida. A percepção dos pais, colegas e amigos era que havia nascido para ser íntimo da bola. Paixão mútua que se transformou em amor de um pela outra e dela por ele. Um grande futuro já se anunciava naquele tempo presente.
A cena mais comovente de Pelé com o pai foi quando sentiu a profunda tristeza de Dondinho quando o Brasil perdeu a Copa de 1950 para o Uruguai. Disse algo como “Chora não, pai. Eu vou ganhar uma Copa para você”. Dito por qualquer outra criança soaria como sonho de infância, longe da realidade. Mas não no caso dele. Revelava o sonho grande de Pelé desde muito cedo. Na verdade, ele nos trouxe a todos, não uma, mas três Copas. Sem esquecer, claro, o trabalho de equipe dos jogadores fenomenais que tinha ao seu redor, e que gozavam daquela proteção extra dos deuses do Olimpo do futebol.
Mas Pelé também sabia que os deuses concedem benefícios, mas exigem sacrifícios. Ainda me lembro bem de uma matéria jornalística sobre Pelé. Ela mencionava o fato de, após o fim do treino diário no Santos Futebol Clube, ele continuar, sozinho, a treinar por cerca de uma hora a mais. Era aquele momento secreto dele com a bola e dela com ele.
E vieram as Copas de 1958, 1962 e 1970, em que Pelé encantou o mundo, o Brasil e lhe permitiram acumular feitos e registros futebolísticos que nenhum outro jogador jamais conseguiu e dificilmente alcançará no futuro. Mesmo Maradona, um grande jogador sem dúvida, não foi muito além de atingir um terço do que Pelé realizou, se medirmos por número de gols, dribles e campeonatos diversos levantados ao longo de sua vida profissional.
Sempre guardei na memória uma foto magnífica, num desses livros grandes e coloridos dedicados ao Rei, em que Pelé tem atrás de si, um de cada lado, dois zagueiros alemães com caras de apavorados sem saber muito bem o que fazer diante da tranquilidade do Rei capaz de evaporar-se e fazer mais um gol.
Mas a marca registrada do Rei Pelé foi nunca ter permitido que a fama e glória lhe subissem à cabeça. Basta relembrar aquela cena famosa, após completar o milésimo gol, em 1969, em que ele faz um apelo para que cuidássemos de nossas crianças. Mais de meio século depois, ainda não conseguimos montar escolas públicas de qualidade em tempo integral. Aquele grito de Pelé ecoa ainda hoje sem que seja ouvido numa república em que o bem comum não conta. Mas que ele deu mostras de levar muito a sério.
Vamos agora a D. Pedro II. Num primeiro momento, poderíamos dizer que nasceu em berço esplêndido. Mas não foi bem assim. Perdeu a mãe aos dois anos e o pai, de certa forma, aos cinco. D. Pedro I seguiu para Portugal para dar combate ao absolutismo de seu irmão D. Miguel, e que ele nunca mais viu ao vivo e a cores. É fato que recebeu educação esmerada ancorada nos magistrais e atuais 12 artigos das “Instruções do Marquês de Itanhaém aos Preceptores de D. Pedro II”. (Basta digitar no Google este título que vem no ato.)
A carga de estudos diários a que era submetido foi muito pesada, mas tinha também aulas de educação física, equitação e esgrima, tendo tido como mestre nestas duas últimas o futuro Duque de Caxias. Numa destas aulas, esqueceu de colocar o protetor na ponta do florete e atingiu Caxias no ombro. Este, por sua vez, disse que não foi nada e que levaria a pequena cicatriz como lembrança vida afora.
Pedro II usou o poder moderador como instrumento de cobrança de responsabilidade às classes dirigentes e para provocar a alternância dos partidos no poder. Garantiu o poder civil, em que as pastas militares eram normalmente ocupadas por civis, que controlavam de fato os orçamentos militares. Durante quase meio século, jamais permitiu que a dotação da Coroa no orçamento fosse aumentada a despeito da insistência dos deputados.
Deu inúmeras bolsas de estudos para brasileiros se aperfeiçoarem aqui e no exterior. A inflação média anual foi mantida em torno de 1%! Havia o controle externo do Judiciário via poder moderador, sempre ouvido antes o Conselho de Estado. Como seu pai, sustentou a liberdade de imprensa e de pensamento, hoje descumprida com a desculpa das fake news. E foi assim que o Brasil se tornou um país respeitado, e o brasileiro manteve sua autoestima elevada dada a respeitabilidade externa e interna do Estado imperial brasileiro.
Ao compararmos os feitos de ambos, ainda que Pelé no plano dos esportes e Pedro II no político-institucional, é bastante claro os pontos de intercessão de ambos em matéria de valores e princípios, que nos encheram de orgulho de ter nascido na Terra Brasilis. Fica no ar a questão delicada da tamanha paixão nossa pelo futebol e certo desligamento da política como coisa que não tem jeito mesmo. A resposta vai na direção do desconhecimento da população em relação ao que já tivemos no passado, como o voto distrital puro e à possibilidade de revogação de mandatos.
A diferença óbvia é que, no futebol, nossas cobranças aos técnicos e jogadores são duríssimas; e na política, não. Não obstante sua vocação e empenho, Pelé se beneficiou dessa cobrança draconiana por resultados. Na política brasileira, é verdade, o cidadão brasileiro ainda não dispõe de instrumentos de controle dos políticos para mudar seu desempenho da água para o vinho em favor da população.
*Assista: “Dois Minutos com Gastão Reis: Democracia de grupelho”.