• Dois articulistas e a mesma desinformação

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  • 21/08/2021 08:00
    Por Gastão Reis

    Fui convidado pelo advogado Rodrigo Mezzomo para uma live, no Instagram, no dia 17/08/21, terça-feira, às 20 horas. A proposta era um debate civilizado sobre o tema “Legitimidade Política e Sistemas Eleitorais”. Acabou, após cerca de uma hora, interrompida por um problema de conexão. A boa notícia é que voltaremos ao tema em breve por sua relevância.

    Em determinado momento, ainda no ar, comentei minha surpresa, diante de pessoas a quem respeito intelectualmente pelo desconhecimento de fatos bem documentados sobre personalidades maiores de nossa História. Pois bem, aconteceu de novo. Eu me refiro a dois artigos. Um, publicado na Folha de SP, no dia 18/08/21, “Abaixo a gritaria”, de autoria do conhecido humorista, ator e escritor Gregório Duvivier; e outro, em O Globo, na mesma data, intitulado “Aranhas, teias e golpes”, de autoria do professor e sociólogo Roberto DaMatta.

    Os comentários que se seguem vão na linha de restaurar a memória nacional.  Povo que esquece seu passado perde o futuro. E também por serem pessoas que têm um grande público leitor, sendo mesmo formadores de opiniões, no caso específico, tortas. Nesse exercício de desinformação, tropeçam nos fatos em relação a D. Pedro I, no caso do Gregório Duvivier; e D. Pedro I e D. Pedro II, no que tange a Roberto DaMatta. Ridicularizar ou desvalorizar o passado imerecidamente é um tipo de esporte cuja prática só faz piorar nossa já cambaleante autoestima nacional.

    O humor de Gregório Duvivier, por vezes ferino, mas, sem dúvida, divertido sobre certas figuras públicas republicanas nos rendem boas gargalhadas. No caso das monárquicas, o tom deveria ser outro para evitar ser enquadrado na categoria de humor troncho.  Ele se queixa da gritaria generalizada que tomou conta do Brasil. Esqueceu de adjetivar: republicano. Começa criticando o “Terra à vista!” do olheiro do navio da frota de Cabral. O ato falho do autor foi afirmar que nossa independência só vai acontecer quando ela for proclamada ao pé do ouvido. Na verdade, a boa democracia deve ser em alto e bom som.

    Já imaginou, caro(a) leitor(a), D. Pedro I sussurrando, um a um, no ouvido dos soldados de sua guarda pessoal um “Independência ou Morte!” baixinho, sem convicção. Nem os cavalos da comitiva imperial iriam acreditar que ele estava, de fato, proclamando nossa independência. Talvez Duvivier desconheça que a Imperatriz Leopoldina assinou, como Regente do Império, no dia 2 de setembro de 1822, o decreto de nossa independência em modo silencioso. Aquele com que o papel recebe o que ali vai escrito. Nos meus tempos de estudante, piada sem graça merecia o seguinte veredito: “Vou rir para não perder o amigo.” Torço para que a verve dele se dirija às figuras que povoam esta república sem compromisso com o bem comum.

    O caso do sociólogo Roberto DaMatta é mais grave por ser, ao que se sabe, um professor bem informado. Reproduzo a seguir parte do penúltimo parágrafo de seu artigo: “O preço do autodesconhecimento é a repetição que conduz à ausência de história e de mudança. Pensar que se podem controlar costumes ou, mais ingênuo que isso, ignorar que depois de Dom João VI, tivemos um Pedro Zero Um e um Pedro Zero Dois e alguns mandachuvas é – no limite da estupidez – desejar não mudar. É voltar ao autoritarismo aristocrático disfarçado de “estados novos”, mostrando saudades das dita-duras.” (Em tempo, “estados novos” no Brasil são típicos produtos republicanos ditatoriais.)

    Ao mencionar os dois Pedros de nossa História como Zero Um e Zero Dois, é evidente que está fazendo uma comparação estapafúrdia com dois filhos do presidente Bolsonaro, como se pudéssemos colocar todos eles no mesmo saco. Além de ser injusta, a comparação revela desconhecimento de quem foram, de fato, D. Pedro I e D. Pedro II. E da obra de peso que realizaram em prol do Brasil. Examinemos em mais detalhe cada um deles.

    Antes, um pequeno esclarecimento sobre D. João VI. Ao tempo da comemoração dos 200 anos de sua chegada ao país, em 2008, houve unanimidade entre historiadores sobre a importância de sua vinda para cá na preparação de nossa independência. Seu legado mudou a cara da ex-colônia de Portugal. E nos garantiu a manutenção de nossa integridade territorial. Este é um ponto de convergência entre historiadores respeitados.

    Quanto ao nosso primeiro imperador, DaMatta parece desconhecer obras como “Dom Pedro I – A Luta pela Liberdade no Brasil e em Portugal (1798-1834)”, de autoria do historiador americano Neil Macaulay, publicado pela Editora Record em 1993. A simples leitura do subtítulo diz muito quando nos lembramos que ele foi para Portugal lutar contra seu irmão absolutista, Dom Miguel, para que Portugal também tivesse uma constituição. O renomado historiador José Honório Rodrigues nos diz que é um livro “justo e completo”  sobre Pedro I. Ou ainda o livro de Iza Salles, “O coração do Rei”, da Editora Planeta (2008), com informações novas documentadas sobre ele. Por exemplo, leitor voraz. O Zero que lhe atribui Da Matta beira a ignomínia, definida em dicionário como “grande desonra infligida por um julgamento público”.

    O outro Zero antes do Dois de D. Pedro II é de suma injustiça. Basta relembrar alguns fatos como a inflação média de 1,5% ao ano em seu reinado (jamais cobrou o cruel “imposto” inflacionário sobre os pobres em que se esbaldou a república); a liberdade de imprensa respeitada por meio século (recorde que a república não atingiu até hoje); a ecologia preservada (floresta da Tijuca replantada); o resguardo a imagem internacional do Brasil (chegou a ser árbitro em questões envolvendo países europeus); a luta junto com sua filha Isabel pela igualdade social (luta de décadas bem sucedida, em que 80% da população de origem negra já era livre via alforrias quando a Lei Áurea foi assinada); e o uso criterioso do poder moderador para coibir os abusos do andar de cima, jamais contra o povo.

    O que o Brasil se tornou hoje é (quase) o negativo dessa bela foto que nos deixou Pedro II. O sociólogo bateu de frente com os historiadores e os fatos. Lamentável.

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