Desrespeito à lei e seu uso para poucos
Existe uma publicação internacional intitulada WJP Rule of Law Index, ou seja, World Justice Project – Índice de Respeito à Lei. A matéria vem com o título “Como a justiça mundial avalia a justiça brasileira”. Como diz aquela canção famosa: “Prepare seu coração para as coisas que eu vou contar”.
Cito literalmente: “Uma vergonha! Alerta vermelho. No indicador “justiça criminal” do WPR Rule of Law Index de 2021, o Brasil ocupa a 112ª posição mundial entre 139 países avaliados. Entre os medidores avaliados estão a efetividade das investigações; a duração razoável do processo (nestes dois, a posição do Brasil é de nº 133 em 139); a capacidade de prevenção criminal (também na rabeira); imparcialidade do sistema de justiça criminal (posição 138 de 139, acima só da Venezuela); ausência de corrupção; e respeito ao devido processo legal (nestes dois últimos, também no fim fila).
Ainda citando: “Tais dados revelam, de forma clara, a completa disfuncionalidade do sistema criminal brasileiro. É tão ruim que consegue reunir, a um só tempo, os piores defeitos possíveis: discriminação e ausência de efetividade”. Trata-se, sem dúvida, de um quadro assustador e desolador, mas que pode ser revertido se for enfrentado com a devida coragem.
Em artigos anteriores, eu já havia abordado questões como a baixíssima efetividade das investigações da Polícia Civil e Militar em desvendar crimes, em especial no estado do Rio de Janeiro. Dizia mesmo que elas sofrem de inoperância estrutural em função da fatídica jornada de 24 horas por 72 horas. Ela induz os policiais a não terem foco em sua ocupação básica, buscando outras atividades nessas 72 horas de folga com a alegação de complementar sua renda. Neles, sugeri a redução do contingente para elevar significativamente a remuneração dos policiais remanescentes com jornada de 8 horas diárias e centrados em sua atividade-fim, como ocorre na grande maioria dos países.
Antes de analisar o lado cínico da nossa alta burocracia, passo a relatar duas situações ocorridas na Suécia. A primeira delas foi a de um amigo em visita a uma grande fábrica sueca. Chegaram cedo, ele e seu cicerone, que estacionou o carro longe da porta de entrada da empresa. Ele perguntou por que não estacionou mais perto já que havia vagas desocupadas na entrada. A resposta foi um primor de preocupação com o próximo: “É para facilitar a vida de quem chega em cima da hora ou se atrasou por alguma razão séria”.
A segunda tem a ver com a questão de melhorar a distribuição de renda entre salários mais elevados e os mais baixos. Existem empresas na Suécia que praticam um aumento percentual diferenciado. Os salários mais baixos recebem um percentual maior de aumento do que aqueles que se situam em patamares superiores. Não se trata de igualar os salários ao longo do tempo, mas de evitar diferenciais salariais exagerados entre os empregados.
E nós, como ficamos na foto? No jornal O Globo, de terça-feira, 27.12.2022, foi publicada uma matéria sobre bombas fiscais. O congresso vai deixar uma fatura pesada de R$ 79 bilhões para o próximo governo. Dois economistas, Claudio Frischtak, da Inter.B Consultoria, e Marcos Mendes, pesquisador do Insper, foram ouvidos. Os comentários de ambos ilustram como caminhamos em direção oposta ao exemplo sueco citado, cujos números, sabemos, revelam o fato de já ser um país com boa distribuição de renda.
E aqui entra em campo o lado cínico da alta burocracia brasileira. Claudio Frischtak nos fala da péssima sinalização dada por ela: “Os segmentos que têm os maiores salários estão se beneficiando de aumentos que vão ter um efeito cascata”. Marcos Mendes fez o seguinte comentário: “Você aumenta o teto de gastos para atender os mais pobres e dá reajuste (generoso, digo eu) de salário para a nata do funcionalismo”. Um grau de cinismo de enrubescer sueco.
O patético em tudo isso é que o STF e estamentos da alta burocracia tentam nos fazer crer que estão nas trincheiras da defesa da democracia. Tal postura deveria estar em linha com as determinações da atual constituição no que tange ao bom uso do dinheiro público. Pelo menos, em tese. Na prática, sabemos que o texto, ao misturar legislação constitucional com a ordinária, colocou em letra de forma a defesa de interesses de vários grupos encastelados no Estado cuja preocupação maior não é contribuir para a melhoria da distribuição da renda.
Não se vexam de passar por cima do espírito da constituição no combate à desigualdade para defender seus interesses de grupos privilegiados. Estamos muito longe da visão de Sólon, que deu uma constituição aos atenienses com leis iguais para nobres e plebeus. Mas não é só isso. No meu artigo “O cala-boca-já-morreu ressuscitou”, publicado no jornal O Dia, em 29/10/2022, eu ironizava as palavras da ministra que resolveu fazer o papel de coveira da liberdade de expressão e imprensa em nome do combate às fake-news. Sólon, dois mil anos atrás, tinha clara noção do que era legislação constitucional e do direito do cidadão livre se expressar em praça pública. Não a ministra.
Criei o termo monocracia para sintetizar a questão fundamental da Lei no sentido de “regras gerais, abstratas, aplicáveis a todos”, como nos diz o Prof. José Stelle em seu último livro “Por uma Nova Carta”, na competente companhia de ilustres filósofos gregos que, há dois milênios, dissertaram com propriedade sobre o tema. O sabor que fica é de quem usa a Lei em causa própria.
Por certo, haverá aqueles que vão se valer do espesso juridiquês para defender o indefensável. Felizmente, as últimas pesquisas sobre as instituições ditas republicanas do Patropi revelam um fato promissor: a plena consciência da população de que elas não estão funcionando a seu favor. Este teste também pode ser feito com aquela pessoa que está tomando um cafezinho ao seu lado no bar de sua preferência. É só perguntar. Situações como essa de agudo descrédito das instituições acabam se manifestando nas ruas para pôr fim aos desmandos do andar de cima. É só ficar atento.
(*) Assista “Dois Minutos com Gastão Reis: Democracia de grupelho”.