• Desarquivando sentimentos

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  • 20/02/2022 00:15
    Por Marco André Dunley Gomes

    Esse episódio aconteceu entre 1962 e 1965. São lembranças que eu guardo em algum arquivo emocional. Vejo nitidamente as imagens da sala da casa tomada pela água barrenta, de móveis balançando, de conversas confusas e de pedidos de ajuda! Lembro de uma escada de madeira e de um muro, de pessoas passando objetos de uma casa para outra. Me lembro, e ainda sinto, que nessa movimentação eu também fui transportado. Tenho gravado em minha retina, as várias camas ‘lado a lado’ e pessoas rezando nas sombras de velas. Estava lá a minha avó (Lourdes), que mais tarde me confirmou ter realmente tudo aquilo acontecido e se mostrava surpresa com as minhas recordações.

    Sempre que passava naquela rua, foram muitos anos – é uma das pistas principais de entrada da cidade (Petrópolis) – eu olhava e ao mesmo tempo sentia a intensidade daquele lugar! Não só das enchentes que mais tarde fui compreender, apavoravam a família, mas também de curtos, mas bons momentos tais como a música que alguém cantava, a ama de leite (acreditem!), a cadela Tutuca que minha mãe sempre
    mencionava, da parede de chapisco que eu passava a mão (ou foi só um dia?), no quarto que eu acredito era da minha mãe e do meu pai (porque ele estava ao meu lado nesse momento).

    Carrego comigo essas lembranças emocionais, muito precoces, de um início de vida (ou seriam reflexos de traumas?). Tenho ainda comigo uma imagem marcante nisso tudo, que é o “Papai do céu”. Uma imagem de Cristo que as pessoas olhavam e rezavam. Alguém dizia “olha o Papai do céu” ele estará sempre com você! (e está mesmo). Muitas coisas aconteceram de lá pra cá!!!! Muitas mesmo. Escreveria alguns capítulos de uma ou duas novelas!!! Com muitos risos, suspenses e choros.

    O tempo passa e de lá – daquela minha cidade-, estou bem afastado e bem distante. Mas aí vem, mais uma vez, as repetitivas notícias das chuvas, enchentes, desabamentos e mortes. Querendo, ou não, a gente se envolve, perguntamos como estão os familiares ainda existentes, dos amigos e conhecidos que estão por lá.
    Tentamos “dar uma força” e os braços parecem que não alcançam. A emoção toma conta e a sua infância passa na TV (e agora nas redes sociais), junto com sua adolescência, sua juventude seus sonhos e seus destinos. Eu olho pro “Papai do céu” (que hoje fica aqui comigo em Brasília), e Ele me diz que tudo ficará bem.

    Me pego até egoisticamente querendo manter distância, mas as imagens, de forma automática, desarquivam meus sentimentos e eu me pego com lágrimas diante do desespero daquelas pessoas, naqueles ônibus sucumbindo exatamente (eu reconheci!), quase que na porta daquela casa. Como é potente essa tal de emoção. Eu hoje agradeço, mais uma vez, e com mais vigor, àquelas pessoas que me transportaram de uma casa para outra e que me acolheram e rezaram por mim e por tantos outros.

    Agora, neste exato momento, ainda apreensivo, eu rezo por aqueles que desapareceram ali, bem ali naquele lugar, onde eu também vivenciei momentos de agonia, e por aqueles que sofreram, sofrem e ainda sofrerão com as enchentes, tem medo de chuvas e trovoadas, e em especial, nesse momento, por aqueles que já
    estão ao lado do “Papai do céu”.

    Contaremos 200 (ou mais) mortos. Número que lembra a inesquecível tragédia de Brumadinho/MG. Por lá, até hoje, a gente ainda acompanha os esforços da Mineradora e do Estado no sentido de “minimizar” os efeitos daquela tragédia. Lá na serra de Petrópolis, entretanto, não identificarão os culpados e não assistiremos punições ou ressarcimentos. As próximas chuvas, mais tranquilas, levarão (ou lavarão), lamas, lutos e algumas tristezas decorrentes de mais esse capítulo (que se repete, e que não vale a pena ver de novo), mas não arrastarão e nem mesmo enterrarão os traumas e sofrimentos que marcaram definitivamente as almas dos Petropolitanos, dos brasileiros e de milhões de cidadãos desse Planeta Terra (tão sobrecarregado) que testemunharam mais esse grandioso desastre, nada natural, e que, infelizmente, tem tudo para se repetir!

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