Deborah Colker promove a união da ópera com o flamenco
Ao longo de uma já bem-sucedida carreira, a coreógrafa Deborah Colker aperfeiçoou uma química considerada por muitos como algo impossível: promover a rara convivência entre a dança contemporânea profissional e o gosto popular. Sem fazer concessões, Deborah estabeleceu uma gramática para o corpo em espetáculos tão distintos como Casa, Nó e Cruel; se aproximou das artes plásticas em 4 por 4; e atingiu a sofisticação ao incorporar narrativas clássicas à sua dança, como em Tatyana (a partir da leitura de Eugene Onegin) e principalmente em Cão Sem Plumas, espetáculo inspirado no poema de João Cabral de Melo Neto e que volta ao Teatro Alfa nesta quarta, 28.
Deborah agora enfrenta novo desafio: dirigir uma ópera. Convidada pela Scottish Opera, a principal companhia do gênero da Escócia, que comemora 60 anos, ela prepara sua versão de Ainadamar, composta pelo argentino Osvaldo Golijov. A estreia está prevista para 29 de outubro, em Glasgow; ela deverá ser montada também no Metropolitan Opera, de Nova York, coprodutor do espetáculo. Um trabalho intenso e complexo ao qual ela está acostumada, depois de criar o espetáculo Ovo para o Cirque du Soleil (2009) e comandar a cerimônia de abertura da Olimpíada de 2016, no Rio.
Foram esses trabalhos de repercussão internacional, além de suas coreografias já apresentadas na Europa, que convenceram a Scottish Opera a convidar Deborah, no final de 2020, a montar uma das óperas comemorativas de seus 60 anos. O desafio foi logo aceito, especialmente depois que ela começou a ouvir o trabalho do argentino Golijov. “Estou fascinada pelas composições dele”, comenta a coreógrafa, que mantém contato constante com o autor argentino.
Renovador
Autor de uma música ousada, mas sem atonalismo, Golijov já foi apontado pela revista The New Yorker como um dos grandes renovadores da cena contemporânea justamente por desafiar gêneros, assumindo músicas populares, étnicas e eruditas com inegável talento. Em Ainadamar, título que se refere à pronúncia espanhola do nome árabe Ayn al-Dam, que significa “A Fonte das Lágrimas”, Golijov ambienta a cena na Espanha do início do século 20, onde o grande poeta e dramaturgo Federico Garcia Lorca (1898-1936) é assassinado pelos nacionalistas franquistas durante a Guerra Civil Espanhola, justamente por sua postura antifascista e sua aberta homossexualidade.
Ele criou uma obra rica, marcada por versos de origens populares, mas de oralidade única. Manteve amizades com jovens artistas como Salvador Dalí e Luis Buñuel, que logo se consagrariam na pintura e no cinema, respectivamente. Tão radical como esses, o poeta criticou duramente o capitalismo americano e, em uma de suas principais habilidades, exibia uma retórica que dominava a atenção de qualquer conversa. Há quem credite a enorme adoração popular pela obra de Lorca ao seu fim trágico. Uma análise bem acurada, porém, prova que o segredo era sua paixão única pela vida.
Bowie
“Lorca é apaixonante, é como o David Bowie de Ziggy Stardust, que uniu pedaços de todos os lugares para se tornar ele mesmo”, conta Deborah ao Estadão. Entre as inovações, ela decidiu que o personagem do dramaturgo espanhol vai ser vivido pela mezzo-soprano americana Samantha Hankey. “É um papel feminino em um elenco que, em sua maioria, é formado por mulheres, o que torna ainda mais forte a representação da marginalização política e social vivida por Lorca”, explica ela, lembrando ainda a musa inspiradora de Lorca, Margarita Xirgu, que será interpretada por Lauren Fagan, e a aluna dele, Nuria, terá Julieth Lozano como intérprete.
Durante 80 minutos, a ópera contará a trajetória de Lorca em flashback por meio das memórias de Margarita. “Em cena, vamos mostrar a relação dele com a arte”, conta Deborah, que selecionou dois poemas do escritor espanhol para serem projetados no cenário, em inglês e espanhol.
Como sua arte lida diretamente com o movimento, Deborah obteve o consentimento da direção da Scottish Opera a aceitar bailarinos no espetáculo, além de convencer os artistas que vivem os protagonistas a também executarem alguns passos de dança. “O flamenco conduz a história e, como traz a dramaticidade necessária, teremos quatro bailarinos desse estilo em cena, além de o cenário ser todo em madeira, para facilitar a execução da dança”, explica Deborah. “O canto lírico do flamenco e toda a dor simbolizada pelos gritos dos cantores estarão em cena. Afinal, é uma ópera sobre o amor.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.