• Daniela Mercury: ‘Brasil tem de matar a fome de comida e de arte’

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  • 29/11/2022 09:00
    Por Julio Maria / Estadão

    Assim que alguns nomes começaram a ser ventilados para ocupar o Ministério da Cultura que o presidente eleito Lula promete reativar em 2023, o de Daniela Mercury se tornou o mais forte deles. Cantora baiana, de 57 anos, casada com Malu Verçosa, historicamente ligada a ações filantrópicas e embaixadora do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Daniela poderia fazer o presidente eleito reeditar o efeito Gilberto Gil, que ocupou a pasta entre 2003 e 2008. Seu respeito como artista e sua assertividade como pensadora engajada dariam ao setor um protagonismo dentro e fora do País.

    As possibilidades de se tornar ministra pegaram Daniela em pleno voo. Ela acaba de iniciar uma turnê por Portugal, na primeira vez em que começa um tour fora do País, vai lançar seu novo álbum, intitulado Baiana, no dia 3 de dezembro, e está no ano em que se completam três décadas do disco que mudou a música dos anos 1990: O Canto da Cidade. Foi com o lançamento deste disco e com um show histórico feito no vão livre do Masp, em 1992, que Daniela se revelou ao Brasil e trouxe consigo algo que os baianos já faziam com o nome de axé music. Ela analisa também um convite para cantar na festa de posse de Lula, em 1º de janeiro. Para isso, teria de conseguir fazer o show entre uma apresentação marcada para 31 de dezembro, em Natal, no Rio Grande do Norte, e outra no mesmo dia 1º, em Salvador.

    Daniela fala com exclusividade ao Estadão sobre a carreira e o cenário político cultural, mas prefere não comentar se foi ou não chamada a servir a equipe de Lula em um futuro ministério. Em uma segunda tentativa a respeito do tema feita após a entrevista, realizada por e-mail, ela não responde nem sim nem não. Apenas que não seria o momento de comentar o assunto.

    Você lança um álbum em um ano histórico para O Canto da Cidade. Qual a importância deste momento?

    O Canto da Cidade é muito marcante em minha vida. Foi o momento da explosão da minha carreira no Brasil e no mundo. E foi também a chegada de um novo gênero musical à música brasileira. Escolhi celebrar esses 30 anos e percebi que meu DNA, que se cristalizou nos meus álbuns solo, está bem presente nesse novo trabalho.

    Qual o reflexo daquele show no Masp?

    Eu pude levar minha música nordestina com novos instrumentos, sons, conceitos, comportamentos e poéticas para o cenário da música brasileira e mundial. Consagrei meus batuques misturados com pop-rock, samba-reggae e MPB. Os shows do Masp e do Bem Brasil, da Cultura, tinham as músicas do álbum Swing da Cor (lançado pela gravadora Eldorado), que foi o embrião do álbum seguinte. Eu me emociono muito quando me lembro daqueles dias, foi uma grande surpresa receber tão calorosas boas-vindas do público do Sudeste.

    E as viagens internacionais começaram, não foi?

    O sucesso gerou o especial na Rede Globo, dirigido por Roberto Talma, na Praça da Apoteose, no Rio, para mais de 40 mil pessoas. Logo em seguida, comecei a fazer shows internacionais. O primeiro foi em Nova York, depois no festival de Montreux, na Suíça, em Buenos Aires, na Argentina; Montevidéu e Punta del Este, no Uruguai; Assunção, no Paraguai; Santiago do Chile, Cidade do México, Acapulco, Escócia, e não parei mais. O Canto da Cidade foi o disco voador, que me levou pelo Brasil e pelo planeta pela primeira vez.

    Como você vê a cultura depois dos quatro anos de gestão de Jair Bolsonaro?

    Os artistas, as artes e a cultura são tão importantes que eu afirmo sem medo que o grau de liberdade artística de um país define a qualidade de sua democracia. Os governos antidemocráticos, como o atual, atacam artistas e tentam calar e controlar a produção cultural, além de tentar impor seus dogmas ideológicos. Antes de ser eleito, o atual presidente já atacava artistas e usava a única lei de fomento da nossa área para desmerecer o setor cultural. Passei esses últimos quatro anos criticando essa política abominável, fiz várias cartas e manifestos de alerta, e gravei músicas como Proibido o Carnaval, Rainha da Balbúrdia, Pagode Divino e regravei Milla para salvar a composição do uso em manifestações antidemocráticas. A regravação de Apesar de Você veio como uma forma de manifesto, com a participação de vários grandes artistas. A pasta da Cultura se tornou a pasta da ignorância, da intolerância, do fascismo e do desrespeito às artes e aos grandes artistas brasileiros.

    Os artistas foram bastante atacados por esses tempos. Você vê a possibilidade de a classe se recuperar de possíveis prejuízos de imagem e materiais?

    A cultura brasileira esteve sem financiamento e sob censura nos últimos anos. Mas vai se reerguer. A classe artística lutou muito para conseguir a Lei Paulo Gustavo e as duas Leis Aldir Blanc. Trabalho, emprego e renda no setor cultural aguardam a liberação dessas verbas, pois a covid, o desfinanciamento e os ataques à cultura paralisaram espetáculos, peças, festas populares e reduziram a produção cultural. É preciso priorizar com muita força o revigoramento do setor, no qual cada centavo investido impacta quatro vezes mais na economia, incrementando o turismo, os hotéis, restaurantes e comércio, e definindo os traços principais do Brasil, como potência cultural e econômica. Mas sobretudo como uma grande democracia. Os que querem destruir a democracia começam atacando a cultura, os que querem fortalecê-la, como eu, defendem que os valores da democracia sejam revigorados no setor cultural. Sobre os artistas, é muito triste ver tantos grandes ícones e pessoas tão corajosas e amadas pelo povo brasileiro terem suas reputações atacadas por discursos de ódio. Mas isso não nos impedirá de continuar a lutar pela democracia. Promover a produção artística é obrigação constitucional e é extremamente necessário. Primeiramente por ser uma indústria poderosa, que foi diretamente afetada pela pandemia, mas é a que mais cresce no mundo, a que mais gera empregos, a que menos polui, e distribui melhor a renda. E é essencial por ser a mais importante expressão da humanidade, da nossa criatividade, inteligência e sensibilidade. E percebo que, neste momento pós-pandemia e pós-ataques às artes, aos artistas e à democracia, a cultura é ainda mais necessária. Precisamos de alegria, beleza, afeto, união e equilíbrio. O Brasil precisa matar a fome de comida e de arte para prosperar.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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