• Da tormenta à esperança

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  • 22/02/2020 09:51

    Laurentino Gomes nos conduz de forma atraente por minúcias de tema espinhoso, em seu “A Escravidão”. Uma delas é a influência das correntes marinhas na epopeia dos descobrimentos e na consequente tragédia escravagista. Num processo lento, de tentativa e erro, o pequeno Portugal, debruçado sobre o Atlântico como a sacada de uma grande casa, foi aos poucos desvendando tais mistérios. Meu saudoso pai, Dinizar de Araújo, era professor. Criança, eu folheava seus livros, de saberes que me eram incógnitas. Me atraiu a tábua das correntes marítimas, com sinuosas setas coloridas e nomes. Eu não sabia ler. Mas lembro meu pai dizendo “o mar tem caminhos”. O brilho da frase ecoou, qual verso de poema que não se entende à primeira vista. Perdi depois a chance de aprender isso adequadamente. Pouco ia à escola. Mas acabei lendo sobre a “volta grande”. Manobra descoberta pelos desbravadores lusitanos. Segredo de Estado, perseguido por espiões em Lisboa. 

    No Atlântico Sul há uma corrente marítima que sobe da região austral, no sentido norte, costeando a África. Corrente fria, que ao encontrar águas quentes da corrente do Brasil, dá mar tempestuoso, com ventos contrários ao desafio de alcançar o Cabo das Tormentas. Quando descobriram que, mais acima, correntes empurravam os navios, primeiro a oeste e depois ao sul, os portugueses acharam a chave do cofre dos mares. Navegavam a favor dessas correntes, para depois, noutra corrente quebrarem o trajeto na direção realmente desejada, a leste. Laurentino descreve isso como “engrenagens de uma máquina colossal” bem manejada por Portugal. Assim foram derrotadas as tormentas, e o Cabo passou a chamar-se da Boa Esperança. Dessa façanha, vieram as Índias, o Brasil e suas riquezas. Novidade que Laurentino me trouxe, foi dessas coisas que soa óbvia só depois de sabida. A influência das correntes marítimas na especialização de rotas de navios negreiros, e na divisão administrativa do Brasil Colonial. Por conta das correntes, países ao sul da África se tornaram origem preferencial dos cativos trazidos pelos portugueses para o Brasil. Países mais ao norte, com traficantes franceses, holandeses e britânicos aproveitando outra “estrada marinha”, se tornaram fonte de cativos para o Caribe. As correntes também fizeram divisão do Brasil, para fins administrativos, em duas regiões. Uma englobava o Norte e o Nordeste, acima do Rio Grande do Norte. Outra, as capitanias abaixo do Cabo de São Roque, até ao Sul do País. A geografia das correntes marítimas escreveu a história do Brasil.

    Lições para a vida, nisso. Somos barcos. Navegando oceanos de desafios, problemas e encargos. Nossas ilhas das especiarias parecem inalcançáveis, e nossa vida, inadministrável. Somos atirados daqui para lá, gravetos no mar, aparentemente sem lógica. Mas a vida tem ciclos, caminhos e correntes marinhas. Cabe a nós identificar o nefasto atalho, que repetidamente nos leva a tempestades e descobrir com paciência e coragem a nossa “volta grande”. O caminho às vezes mais longo, mas que nos dará bom porto. Há pessoas, hábitos e decisões que são correntes favoráveis e outras, que só dão tempestades. Sábio é respeitar limites, não arriscar nossas velas, e nos afastarmos de tudo que tenta nos naufragar. Empreender a “volta grande” que fará a tormenta se tornar esperança e abrirá especiais horizontes de descobrimentos e especiarias de afeto e alegria para nossa vida. 

    Que assim seja. 

    denilsoncdearaujo.blogspot.com 

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