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  • 06/jul 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Toda vez que que perco um amigo, lembro os versos do poeta John Donne:

    “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

    Os sinos que dobraram na segunda-feira (30/06) foram por nós, membros do Grupo da Padaria. A dor de uma partida, a dor diante da irreversibilidade da morte tem mais chance de encontrar conforto no espaço eterno. A cada dia, certifico-me que a vida é um sopro. A fragilidade da chama de uma vela revela a efemeridade humana. É simples assim: deixa-se de respirar e pronto. Foi-se.

    O choque vem pelo inesperado, sem aviso prévio. “Pra morrer, basta estar vivo”. Essa frase de cunho popular sempre me incomodou. E, na segunda-feira que passou, quando eu a ouvi, vi que era uma pedra no meio do caminho. Topei não no “pra morrer”, mas no “basta”. “Morrer” é um verbo intransitivo e, pelo qual, não se deseja transitar, porque, por ele, a indesejada sempre trafega.

    “Estar vivo” não basta, pois o “viver” requer uma consistência que se alimenta do servir. O “viver” limpo e seco, sem propósito, não agrega sentido. A vida, quando vivida na intensidade do servir edificante, ganha dimensões eternas, pois são construídas lembranças que alimentam saudades. E nessa edificação, o concreto é o amor que une, solidariza, pacifica, agrega, fraterniza…

    Indubitavelmente, as aspirações humanas, no âmbito espiritual, são sedentas de eternidade. A plenitude do bem não está dissociada da felicidade, por isso que a Prudência, a Justiça, a Força e a Temperança, que são consideradas virtudes cardeais, encontram-se nos alicerces das atitudes que apontam para a sensatez.

    Pela fé, tem-se, aos domingos, o hábito de ir à missa, ou ao culto, isto é, em função de uma religiosidade, há uma prática cristã que reverencia um Deus, Onipotente, Onipresente e Onisciente, Senhor do Supremo Bem. Para reverenciar esse Deus, pessoas buscam as igrejas. Foi assim que nasceu o Grupo da Padaria: pessoas que não se conheciam passaram a frequentar a mesma igreja aos domingos. E, pela frequência assídua, criaram-se laços de amizade. Esse vínculo afetivo passou a ser alimentado por diálogos informais em torno de um cafezinho em uma padaria.

    Atravessamos a pandemia. O distanciamento social imposto por ela não nos esperou. Hoje o grupo está mais forte pela dor. Os nossos corações estão criando calos. A dor une também. Primeiro, tivemos a partida do querido amigo Aloysio Bade. Com a ferida da partida dele ainda não cicatrizada, fomos surpreendidos com a partida de outro querido amigo, o Alcides Antônio de Sá Marques, responsável pela manutenção do humor do grupo.

    Ele pensava muito rápido. Tinha o dom de manter o tom da serenidade e da seriedade na sutileza de uma piada de improviso. Quem não ficasse atento ao que ele falava perdia o humor explorado no contexto da conversa. Como sou lento, só entendia a piada depois que todos riam. Raramente pegava de primeira. Como isso era frequente, passei a ligar as antenas para captar a mensagem e não perder o tempo do riso. Lamento não o ter conhecido antes. Teria eu, talvez, assimilado as suas lições para neutralizar polaridades ideológicas na sedimentação do bom senso.

    Aos domingos, eu o via descer a Marechal Deodoro em direção à Capela do Colégio Santa Isabel. E a esposa, Marli, descia pela mesma rua para ir à Igreja Metodista que fica quase em frente da entrada da Capela.

    Após a celebração da missa, os cumprimentos eram no pátio da escola. Em seguida, íamos à padaria, onde a prosa se alongava com média e pão na chapa. Ele era sempre o primeiro a querer “levantar o acampamento”. E a senha era conhecida: “estou com saudade da Marli. Há muito tempo que não a vejo” – quem pensa que o amor envelhece engana-se…

    No domingo (29/06), o nosso encontro foi rápido, pois, em período de Bauernfest, a padaria fica muito movimentada. Cheguei primeiro para reservar o nosso lugar. A alegria foi como a de sempre. No fim da tarde, ele e a esposa deram uma passada nas barraquinhas que estão no pátio da Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Depois voltaram para casa tranquilamente. No meio da noite, sentiu-se mal. Pediu para ir ao hospital: teve um infarto fulminante.

    Na segunda-feira, no início da manhã, pelo grupo da padaria, tivemos a triste mensagem sobre o falecimento dele. A pergunta do imprevisível saltou: – como?

    O pedido dele foi atendido, sempre falava que queria partir assim no de repente, sem dar trabalho a ninguém, sem ficar meses em cama de hospital. O semblante dele era de quem estava dormindo um sono profundo. O adeus teve o suporte da fé. Ele era da paz.

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