Da meia para um terço
Sei que lhe ocupo o tempo contando histórias minhas. Mas é que, para afrouxar o apertado nó do aperreio acumulado na mente, o melhor remédio é entreter horas passantes com boa prosa. Distrair por igual é ganho de aprendizagem. Dou ouvido com atenção a quem me conta vivência de lições aprendidas em labuta do dia a dia. Riqueza de amizade só se guarda no coração, não carece de entrar em fila para ter atendimento. Há satisfação quando se relata o que faz crescer por dentro, o que leva a entender melhor o viver.
As relembranças arejam o passado que nortea a nossa caminhada. O vivenciamento exige equilíbrio em ponderações. Nem tudo vai no ferro e fogo. A brandura tem a suavidade da brisa que sopra no devagar e sempre. Na perseverança, carrega-se a ternura. Sossego não é inércia. Quem pede licença demonstra o desejo de entrar em um ambiente que, talvez, nem lhe caiba, mas não deixou de demonstrar educação na chegada. Há constância na mansidão. A tempestade é destrutiva, não fertiliza o silêncio. As árvores que a suportam fortificaram-se no calado que as noites guardam. Aprenderam a crescer em busca da Luz.
Quem vive intrigado com a verdade costuma jogar pó de serragem para encobrir o rastro por onde anda. E quem deixou o rabo preso não vai muito longe, pois não consegue voar. Não respira liberdade. Ser livre é vitória do bem-estar consigo. Paz interior é uma conquista da consciência sã. Posicionar-se ao lado do Bem não é neutralizar-se.
O que tenho a lhe dizer hoje é que ganhei uma manhã de domingo ao ouvir, numa padaria, um amigo em um cafezinho bem reforçado com um pãozinho na chapa. Conversamos sobre as nossas travessias. Quando lhe falei de pestana queimada em lamparina no ofício da leitura; ele, em mansidão de voz, falou: “conheço bem isso”. Sabia do que se tratava com conhecimento de causa.
E aqui preciso lhe dizer que ainda guardo o ensinamento materno de manter respeito e atenção aos mais vividos. Quando isso é regado por uma boa amizade, a consideração transborda, pois há o carinho da convivência. É agradável estar ao lado de pessoas harmonizadas na paz. Entre goles de café, aprumei o ouvido:
“Era menino no tempo da guerra. Meu pai trabalhava para um senhor que era dono de terra. O serviço que ele fazia era em contrato de meia. O que plantava e colhia era dividido no meio. Metade ficava em casa, a outra metade era para o dono do terreno. Assim viviam os meeiros lá de Minas. Com a guerra, as coisas ficaram mais difíceis. Mesmo depois que ela acabou, as dificuldades para o sustento da vida continuaram. Os donos de terra começaram a pôr fim nos contratos de meia. Queriam que os meeiros ficassem apenas com um terço do que produziam. Muitos não aceitaram essa exploração. E, arrumaram as trouxas. Vieram para as bandas de cá. Aqui tem muita gente que veio de Minas para não ficar trabalhando na roça sem direito a quase nada. Quem era meeiro não queria ser terceeiro.”
Quem não tem veias fincadas na terra talvez não consiga entender bem a dor de quem produz e não pode desfrutar do seu trabalho. Quando ouvi a história desse amigo, lembrei-me de outro que viveu em um pedaço de chão, mas que, no papel, sempre pertenceu a outros. A fazenda em que nascera já teve vários donos. Hoje ele não pode mais andar livremente dentro dela, nem ouvir o canto dos pássaros no lugar onde passou a infância. Quando menino, ajudava o pai a tocar o gado na fazenda. A luta por um pedaço de chão para morar, para cultivar e alimentar a família é uma questão de sobrevivência.
Na manhã de segunda-feira, o silêncio na escola estava maior, pois era dia de aplicação de prova. Por volta do meio dia, entrou, pela janela, uma conversa em um tom mais alto e algumas risadas soltas. Como se tratava de algo não comum naquele horário, fui olhar: eram trabalhadores que almoçavam sentados na calçada e descontraidamente dialogavam. A temperatura estava em torno de 16º graus. O pensamento voltou para a roça. Era visível a descontração deles. Naquela pausa do trabalho, havia um clima alegre. Lembrei-me dos boias-frias. Aqueles homens com as marmitas nas mãos não me pareciam diferentes. Chamei um colega que estava na sala para ver aquela hora de almoço. Ele também pensou alto:
– Esses são os boias-frias do meio urbano…
É preciso diligenciar a vida assim pacificada na ternura, mas sem acomodação, sem atitudes intempestivas, sem arrogância, sem subjugar ninguém. A simplicidade, a humildade são essências da liderança. É preciso denunciar os assédios morais e o trabalho análogo à escravidão.