• Crônica do Ataualpa: Vozes de resistências

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  • 30/01/2022 08:00
    Por Ataualpa Filho

    Hoje peço desculpa por esta digressão, pois, quando caminhamos pelas lembranças, o passado fica mais próximo e as divagações nos transportam para o tempo registrado na memória que nos ajuda a compreender melhor as nossas reações no presente. Pedaços de passados alinhavados pelo fio da lembrança pode ser uma colcha de retalhos. Mas colcha de retalhos também aquece.

    As recordações geralmente abrem espaços para os pensamentos reflexivos. Outros animais podem ter memória, mas acredito que só os homens podem usá-la reflexivamente para aprimorar o ser, pois as meditações ajudam na avaliação das nossas atitudes.

    Na quinta-feira passada (20/01), faleceu, no Rio de Janeiro, com 91 anos de idade, a cantora Elza Soares. Quando li a notícia sobre o falecimento dela, lembrei-me da primeira vez que vi Elizeth Cardoso. Não me peça explicação. Não sei explicar as razões pelas quais a lembrança de Elizeth Cardoso saltou na minha memória. Eu era bem jovem quando a vi na Gávea, na sede do Clube de Regatas do Flamengo. Fiquei estático diante daquela senhora que cantava as canções que minha mãe tanto gostava.

    Elizeth Cardoso foi uma das maiores intérpretes da Música Popular Brasileira. Conhecida como a Divina não somente pela beleza de seu canto, mas também pela elegância, pela postura em suas apresentações.

    Ao longo dos anos, aprendi que não basta ter talento, é preciso ter uma conduta profissional, uma personalidade que sirva de referência. Quando ouvi, pela primeira vez, a voz de Clementina de Jesus também fiquei fascinado e algumas indagações surgiram: como alguém carrega, na voz, a cultura de um povo? Como alguém pode representar os anseios de liberdade em uma manifestação cultural? Jovelina Pérola Negra e Dona Ivone Lara seguiram na cadência do samba guiadas pela estrela de Clementina…

    A resistência de um povo também pode ser vista pelas manifestações culturais. Para mim, a voz de Jamelão é um dos estandartes da Estação Primeira de Mangueira. A Velha Guarda da Portela é um exemplo de que as raízes precisam ficar expostas para que as tradições sejam mantidas.

    Não há dúvida que o sucesso é efêmero. E, nos dias atuais, ainda mais descartáveis. Mas quem se alicerça com raízes no coração de um povo eterniza-se.

    Na voz de Luís Gonzaga, o Nordeste está presente. “Asa Branca” é um hino nordestino assimilado naturalmente. João do Vale, Jackson do Pandeiro são ícones do cancioneiro de um povo que sofre tanto por questões geográficas, quanto pelas ações políticas, como pelas desigualdades econômicas, mas não se rende. O sotaque, o vocabulário, a poesia, a música, o artesanato, em suma, a tradição popular tende a conservar a identidade regional.

    Noel Rosa continua vivo em Vila Isabel. Luiz Melodia, no Estácio. Cartola, no Morro da Mangueira. Dorival Caymmi, na Bahia. Milton Nascimento está em Minas. Adoniran Barbosa embarcou no “Trem das Onze” e expôs a cidade da garoa para todo o país. O samba paulista passa por ele. A arte de Itamar Assumpção já o materializou em uma estátua de bronze colocada em frente ao Centro Cultural da Penha, na Zona Leste de São Paulo.

    Elza Soares escreveu a sua história com a Música Popular Brasileira. O cantar para sobreviver consiste em uma proposta de superação, de luta contra as adversidades. Como se não bastasse a conquista do pão de cada dia, ainda é preciso vencer as barreiras dos preconceitos. Muitos artistas conseguiram vencer tais barreiras não somente pelo talento, mas também pela força interior proveniente de uma consciência que estabelece uma identidade com uma parcela da população que se sente representada. Quem busca somente a fama a qualquer custo sem se identificar com os anseios populares corre o risco de ser esquecido, de ficar no ostracismo, após o período dos efêmeros sucessos. Hoje a mediocridade tem valor comercial, mesmo sendo uma mercadoria descartável.

    A voz de Elza Soares traz a tenacidade, o vigor, a energia de quem vence a fome e as estruturas corrompidas de uma sociedade viciada pelo tráfico de influência. A arte oxigena o viver e nos torna mais fortes quando unimos as nossas vozes em um só canto: – Liberdade!…

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