• Crônica do Ataualpa: Sem cabresto

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  • 20/03/2022 08:00
    Por Ataualpa Filho

    Defeitos, eu tenho, mas não são de nascença, são de vivência. O meu coração ficou rente à boca. O que penso e sinto salta assim verbalizado com as censuras quebradas. Às vezes, sem descuido, as palavras carregam lágrimas que vazam pelos olhos sem retenções. “Um sentir é o do sentente, mas o outro é do sentidor, já dissera Rosa por Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas”.

    Dita ou escrita, é com verdade que se liberta. A alma voa é com asas sem penas. A minha anda muito espremida entre escombros de guerra, de tragédias, de pandemias, de covardias, de injustiças… A dor do outro também se sente quando se tem, na consciência, a certeza de que todos somos iguais. Irmão é ir-mão.

    A realidade não escolhe retina, é para ser vista por todos. Os que têm catarata na consciência não enxergam o sofrimento do próximo, nem ouvem apelo de paz.

    Escoar tristeza com palavras é ofício de poesia. Com leitura, jardina-se o coração. As flores pegam de galho…

    Acredite, o bom cabrito é o que berra. Não cala, não consente, não é conivente, denuncia o açoite. Tem, na pele, as marcas do chicote, mas não se rende, grita: – liberdade!

    Um amigo, que dormiu muito tempo nas ruas, foi quem me disse para não contar carneirinhos no meio da noite: “insônia se vence com o terço”. Ouvido de mãe identifica soluço de filho no escuro…

    Vinho do bom é de uvas pisadas. O tempo é que o purifica. A ostra que sofre com grão de areia é que produz pérola. As resinas vêm de árvores feridas. O que difere o homem dos outros animais não é a capacidade de sentir dor, mas a possibilidade de externá-la em forma de arte que, às vezes, é um lamento tão explícito quanto um grito. O viver é a pedra que o tempo esmera. Não era para ser uma penitência, um martírio. Envelhecer é processo de aprendizagem…

    Pelo vivido, eu lhe atesto, nunca vi um louco sem matulão nas costas. Há os que o carregam no peito. Contudo, mesmo que o coração esteja calejado, o verdadeiro amor não se rende e não se vende. O desafio de amar dá sentido ao viver. Não há vida sem lida. Aqui lhe confesso: – a realidade ainda não abateu todos os meus sonhos…

    Concordo com Belchior quando afirmara que “viver é melhor que sonhar”. Mas, para mim, os sonhos são como as fendas que existem nas pontes para suportar a dilatação do concreto. A ficção me leva a enxergar melhor a realidade que se supera em contradições. Já me sinto incapaz de aceitá-la sem a questionar. Esse incomodo é que me coloca no fio da linguagem sem escafandro. A dor física é suportável. As que mais incomodam são as que ferem a alma, pois esta também não usa escudo. Mas prefiro viver assim com as chagas expostas a revestido de super-herói.

    Quero ser apenas humano. Se essa for a minha pena, aceito-a resignado. Tenho consciência da minha mediocridade. Tenho certeza de que não vim ao mundo a passeio, nem para fazer negócios. Sou incompetente para acumular capital. Os meus investimentos não são bancários. As coisas de que gosto são imensuráveis, abstratas. Para mim, fantasma é a realidade que nos assusta com cenas de violência explícita. É deprimente ver a luta do homem contra o homem por coisas insignificantes. Como alguém se mantém insensível diante do sofrimento das crianças no meio de uma guerra?

    Por um corte é que se vem ao mundo. A dor é inevitável, é inerente à condição humana. Porém, o nosso padecimento seria menor se houvesse mais compreensão entre os homens.

    A minha resignação provém da convicção de que nem a vaidade, nem o orgulho suportam a erosão do tempo, apodrecem, pois são perecíveis. O que leva à eternidade não está exposto aos olhos. Só pode ser visto pelo coração, pela alma…

    E, para finalizar, quero lhe dizer que a poesia é um processo hemorrágico. São veias abertas que destilam a vida em linguagem. A arte é a face divina do homem: liberta o espírito, oxigena o viver.

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